“Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento de Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vez”.
O trecho acima pertence ao romance Memorial do Convento, do aclamado escritor português José Saramago, vencedor do Prémio Nobel de Literatura em 1998. A obra, que narra factos históricos entremeados por elementos ficcionais, foi publicada pela primeira vez em outubro de 1982 e hoje conta com mais de 50 edições e traduções para mais de 20 idiomas.
O enredo descreve o período de construção do Palácio Nacional de Mafra (também conhecido como um convento) obra fruto de uma promessa de D. João V, que não conseguia ter herdeiros com D. Ana Maria Josefa, facto que o impediria de proceder com a sucessão do seu trono absolutista.
No plano da ficção, Memorial do Convento narra a história de amor entre Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas, que se juntam ao Padre Bartolomeu Dias na construção da Passarola, uma máquina voadora que os condenaria à morte por bruxaria.
Quer conhecer mais sobre o livro Memorial do Convento, os seus principais personagens, enredo, análise da obra, entre outros aspetos relevantes? Então continue a leitura deste artigo que preparamos especialmente para si.
Personagens de “Memorial do Convento”
Romance histórico ficcional, Memorial do Convento apresenta personagens históricos e outros concebidos para complementar o enredo. Conheça os principais:
Personagens pertencentes à História
- D. João Quinto: rei de Portugal, representante do absolutismo e repressor do povo, é retratado no livro de Saramago como um homem vulgar, ignorante e libidinoso.
- D. Ana Maria Josefa: rainha de Portugal, representa a submissão da mulher da época, cuja única missão era gerar herdeiros para o marido. No romance é retratada como uma mulher submissa, medrosa e beata.
- Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão: brasileiro nascido em 1685, ignorava o fanatismo religioso da época, acreditava na ciência e, pelo seu espírito visionário, foi perseguido e morto em 1724 pela Inquisição.
- Domenico Scarlatti: músico italiano que compôs inúmeras músicas, peças musicais e ganhou fama como compositor e maestro. No romance, é o mensageiro da morte do Padre Bartolomeu a Baltasar e Blimunda.
Personagens fictícios
- Blimunda de Jesus (Blimunda Sete-Luas): jovem com poderes sobrenaturais que se apaixona por Baltasar à primeira vista. Possuía o dom de ver o íntimo das pessoas, representando assim a transcendência do ser humano quanto à morte, o amor, o pecado e a existência de Deus. Foi a única sobrevivente da Inquisição.
- Baltasar Mateus (Baltasar Sete-Sóis): jovem corajoso e forte que se apaixonou por Blimunda assim que a conheceu. Perdeu a mão esquerda em combate durante a Guerra da Sucessão Espanhola, característica corporal que representa os horrores do período de conflito armado. É quem ajuda o padre Bartolomeu a realizar o seu sonho, tornando-se o responsável pela conclusão do projeto de uma máquina voadora (Passarola) depois que o padre foge para a Espanha.
Memorial do Convento: resumo
O enredo de Memorial do Convento começa com a história de D. João V e D. Ana Maria Josefa, casal que depois de dois anos juntos ainda não tinham filhos. Beata, quando finalmente consegue engravidar, a rainha relata o ocorrido ao Frei António de São José; na posse dessa informação, este procura o rei para relatar uma suposta premonição da vinda de um herdeiro, mas que tal graça seria alcançada apenas se um convento fosse construído em Mafra. Esperançoso, D. João V faz a promessa de construir o convento caso a rainha engravidasse.
A construção do convento vitimou vários operários, entre eles o irmão de Baltasar, que morreu após cair de uma janela. Baltasar, que também era um operário, conhece Blimunda, uma jovem que tinha o dom de ver o interior das pessoas e captar as vontades dos moribundos, e por ela se apaixona.
O casal conhece o padre visionário Bartolomeu de Gusmão, e juntos dão início à construção de uma máquina voadora que sobe em direção ao sol, a Passarola. Pela sua invenção pouco convencional, o padre passa a ser perseguido pela Inquisição, motivo que o leva a fugir para a Espanha, sendo capturado e morto tempos depois.
Desamparados dos favores do padre e acusados de bruxaria, Baltasar e Blimunda escondem-se em Monte Junto, Mafra, e um dia, ao fazerem a manutenção da máquina, Baltasar fica preso a um dos cabos que impede o voo da passarola. O cabo rompe-se, o que faz com que a aeronave vá aos ares e depois despenque.
Após esse facto, Baltasar é capturado pela Inquisição – sem saber do paradeiro do seu amado, Blimunda passa a procurá-lo, até que, depois de 9 nove anos de incansável busca, durante um auto de fé reconhece-o no momento em que este está sendo conduzido à fogueira, condenado por bruxaria. Prestes a morrer, a vontade de Baltazar desprende-se do corpo, sendo capturada pela sua amada Blimunda, a jovem com poderes sobrenaturais.
Breve análise de Memorial do Convento
A mistura de personagens reais e fictícios é utilizada por Saramago para abordar temáticas como o amor, as relações humanas, a religião e a exploração do povo miserável em prol das vontades dos homens poderosos.
Além disso, o autor faz também uma reflexão acerca da perseguição da igreja em Portugal no século XIX àqueles que não seguiam os dogmas do catolicismo, sendo estes (judeus, cristãos novos, muçulmanos) acusados de bruxaria.
O dilema entre a liberdade do amor é outro assunto ao qual Saramago se dedica – enquanto a rainha era submissa ao rei, sem liberdade para amar, Blimunda, uma mulher despojada e sem pudores, era livre para viver o seu romance com Baltasar.
Assim, podemos dizer que Memorial do Convento se trata de um romance que critica a história, a sociedade e a hipocrisia religiosa, temática recorrente na obra de Saramago e que por tantas vezes causou indisposição entre o célebre escritor e a Igreja Católica de Portugal. Com uma estrutura cambiante, Memorial do Convento promove, por meio da presentificação dos factos, uma revisão crítica da narrativa histórica, destituindo-a da sua condição de oficial e, logo, passível a interpretações.