Profissionais de risco: como garantir o autocuidado?

profissões de risco

O trabalho é fonte de rendimento, estruturação, muitas vezes satisfação e realização. Mas é também, em determinados casos, potencial fonte de risco. Existem profissionais que, pela natureza do seu trabalho, se encontram em risco acrescido, não só em termos físicos, de segurança ou saúde, mas também em termos psicológicos e emocionais.

Por isso, torna-se fundamental que estes profissionais, para além das suas competências técnicas, se dotem de um conjunto de ferramentas e estratégias que lhes permitam garantir o seu autocuidado.

O que são profissionais de risco e que profissões se encaixam nesta categoria?

Profissionais de risco são todos aqueles cuja atividade laboral comporte potenciais perigos ao nível da segurança e saúde, física e mental. Focamo-nos aqui em particular nos riscos psicológicos e emocionais, considerando assim todos os profissionais que lidam com a sobrecarga laboral e com o sofrimento. O contacto com o sofrimento de outras pessoas pode criar um trauma vicariante, isto é, a passagem do sofrimento para o próprio profissional.  Neste grupo de profissionais inserem-se:

  • Forças de segurança, militares e polícias;
  • Bombeiros;
  • Tripulantes de ambulâncias;
  • Profissionais de socorro e salvamento;
  • Profissionais de saúde em contexto hospitalar (médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares, etc);
  • Profissionais que trabalham em morgues ou funerárias;
  • Jornalistas – apesar de não terem a função de proteção de outros, estão muitas vezes na linha da frente em situações críticas e na cobertura de eventos potencialmente traumáticos estando, por isso, expostos;
  • Psicólogos;
  • Assistentes sociais;
  • Voluntários em organizações de defesa dos direitos humanos, de salvamento e emergência, de acolhimento a refugiados, entre outros – muitas pessoas se voluntariam para estar em cenários de crise, acabando por estar expostas a situações potencialmente traumáticas. Acresce aqui o risco de frequentemente estes voluntários não terem a mesma preparação dos profissionais.

A que eventos estão estes profissionais expostos?

Este grupo de profissionais está frequentemente exposto a situações em que a sua segurança ou a de terceiros está em risco, ou ao sofrimento de várias pessoas, em situações tais como:

  • Contacto com feridos graves;
  • Contacto com sobreviventes e familiares de vítimas mortais;
  • Contacto com doenças potencialmente contagiosas;
  • Presença em cenários de perigo e segurança reduzida;
  • Contacto com pessoas em situação de vulnerabilidade social;
  • Contacto com pessoas em sofrimento extremo.

Em suma, estes profissionais lidam de forma frequente e repetida com situações de perda de vidas, de bens, de condições de saúde.

A forma como os profissionais são expostos é variável e pode ocorrer a dois níveis:

  • Exposição primária ou direta – quando o profissional está, ele próprio, exposto a algum perigo. Por exemplo, um bombeiro que numa missão de resgate está em perigo físico, ou um médico que pelo contacto com doentes infeciosos pode estar em risco de contaminação;
  • Exposição secundária ou vicariante – ocorre quando o profissional é exposto não diretamente, mas sim à situação adversa de outra pessoa: ouvir o relato, observar o sofrimento do outro, etc.

É necessário ter em conta que frequentemente os profissionais sofrem os dois tipos de exposição. A exposição secundária tende a ocorrer de forma repetida e cumulativa, pois estes profissionais contactam de forma diária com o sofrimento de terceiros, o que provoca um maior desgaste.

A esta exposição acresce o facto de estas profissões terem frequentemente outras características e riscos psicossociais associados:

  • Contextos de intervenção com condições extremas, imprevisibilidade, elevada responsabilidade e com perigos vários;
  • Trabalho por turnos, que prejudica a qualidade do sono e a qualidades das relações sociais e familiares;
  • Carga emocional elevada;
  • Dificuldade na conciliação trabalho-família.

Que fatores influenciam o impacto nos profissionais?

Sabemos que os profissionais anteriormente referidos estão habituados a lidar no quotidiano com situações difíceis. Vários deles recebem uma preparação e formação específica para isso e, como tal, nem todas as situações críticas serão potencialmente traumáticas. Há, no entanto, alguns fatores que colocarão o profissional em maior risco:

  • O tipo de experiência com o que o profissional contacta – o tipo de situação (se tem causa humana, por exemplo um ataque terrorista, poderá ser mais impactante do que se a causa é natural); a duração e intensidade da exposição; as consequências (quanto mais perdas decorrem da situação crítica maior o impacto);
  • A proximidade do profissional – quanto mais próximo o profissional está e, sobretudo, quanto mais próximo se sente do incidente, maior o impacto. Por exemplo, um bombeiro que tem de combater um incêndio na zona onde vive e trabalha ou que tem de resgatar pessoas que conhece, amigos e vizinhos, terá um impacto potencialmente maior. Muitas vezes estes profissionais podem ter que trabalhar em cenários onde existe proximidade física mas também emocional.
  • As características do próprio profissional – se o profissional se encontra num momento mais vulnerável da sua vida, se teve experiências traumáticas anteriores, que recursos tem disponíveis para gerir a situação…
  • Os recursos e apoios que são colocados ao dispor do profissional.

Considerando estes fatores de risco, as experiências com maior impacto e que se tornam mais perturbadoras para estes profissionais são:

  • Situações em que existe proximidade afetiva com a vítima;
  • Grau de identificação com a vítima – por exemplo, um médico que está a cuidar de alguém com a sua idade, profissão ou história de vida;
  • Experiências parecidas com situações que o profissional viveu anteriormente e que foram particularmente impactantes. Há, neste caso, um reativar da situação anteriormente vivida;
  • Testemunhar diretamente uma morte violenta, ser exposto à morte ou à manipulação de corpos;
  • Sentir-se responsabilizado ou culpado de alguma forma pelo ocorrido – por exemplo, um médico que se sente responsabilizado por não ter conseguido salvar a vítima;
  • Incidentes com crianças;
  • Incidentes que afetam colegas de atividade – por exemplo, um bombeiro que perdeu um colega num incêndio;
  • Incidentes diretamente relacionados com a segurança do próprio;
  • Resposta demorada por parte de outras equipas;
  • Perceção de falta de preparação adequada para as ocorrências – é natural que uma experiência crítica tenha maior impacto num estagiário ou profissional menos experiente, ou com menor formação e preparação.  

Que condições de trabalho são essenciais para diminuir o risco?

Sendo a natureza do próprio trabalho um risco por si só, outras condições laborais devem estar reunidas para que o impacto no profissional seja o menor possível, evitando-se o desgaste, a sobrecarga e, consequentemente, a crise psicológica. Estas condições devem ser:

  • Boa gestão organizacional – existências de planos de ação e protocolos bem definidos, bem como uma adequada coordenação dentro da instituição ou entidade onde o profissional trabalha;
  • Existência de recursos humanos e materiais necessários à adequada realização do trabalho;
  • Processos de recrutamento e seleção adequados que verificam a capacidade e competência do profissional para o desempenho da função;
  • Adequada formação e preparação para o desempenho da função;
  • Segurança laboral e financeira;
  • Apoio por parte da chefia e da equipa;
  • Participação nas tomadas de decisões e sensação de controlo – o profissional deve ter um papel ativo nas decisões relativas ao seu trabalho, e ter alguma margem para controlar o seu trabalho e as suas tarefas;
  • Evitar a carga de trabalho excessiva e respeitar horários e turnos;
  • Evitar exigências contraditórias e falta de clareza na definição de funções. Isto é, deve ser claro quais são as funções do profissional, o que é que ele deve fazer e o que deve ser delegado a outro profissional, bem como a quem deve pedir informações e a quem deve reportar ou responder.

Como devem os profissionais garantir o seu autocuidado?

Para além das medidas tomadas pela entidade ou instituição que emprega o profissional e do domínio de competências técnicas fundamentais, é imprescindível que o profissional adote medidas de autocuidado que o protejam e diminuam o risco associado à sua atividade laboral.

Ter um bom autoconhecimento

Ninguém é invencível e qualquer profissional é, antes de tudo, um ser-humano. Por isso, é fundamental que o profissional possua um bom autoconhecimento e seja capaz de identificar os seus limites. É preferível não integrar uma missão do que integrá-la sem estar devidamente preparado para isso. O profissional deve saber que experiências o vulnerabilizam, que cenários são especialmente críticos para si. Além disso, face a cada trabalho que é proposto, o profissional deve avaliar o seu atual estado de disponibilidade física, temporal, familiar e emocional. Deve ainda avaliar necessidades de ordem prática e individual, como por exemplo se tem com quem deixar os filhos.

Conhecer e respeitar a dinâmica organizacional

Em qualquer missão de risco existe uma organização que deve ser respeitada. Para que os profissionais se encontrem protegidos e que possam proteger os outros, é fundamental que conheçam bem a organização (a quem devem responder, qual a coordenação, quem dá ordens) e que cumpram as ordens e diretrizes que lhe são dadas. Querer agir por si próprio e tomar decisões inadvertidas pode resultar em erros e riscos acrescidos para os outros e para o próprio profissional. 

Adotar hábitos de vida saudáveis

Hábitos de vida saudáveis promovem um bem-estar físico e mental que será protetor. Praticar exercício físico, ter hábitos de sono regulares e manter uma alimentação saudável são hábitos fundamentais.

Conhecer os seus limites e avaliar o nível de desgaste

Os profissionais que trabalham no cuidado e proteção aos outros têm geralmente um forte sentido de missão. Por isso, frequentemente vão ao seu nível de exaustão. No entanto, o desgaste do profissional será prejudicial para si e para aqueles de quem cuida. Assim, é fundamental que o profissional saiba avaliar adequadamente o seu nível de cansaço e desgaste, que tenha a capacidade de perceber quando precisa de parar e de descansar. Precisamos de estar bem cuidados para podermos cuidar do outro.

Não prescindir de tempo livre

O profissional que trabalha sem parar não conseguirá estar no seu melhor no desempenho das funções. O nosso bem-estar mental e emocional exige que tenhamos tempo para nós próprios. Por isso, o tempo livre não deve ser visto como um desperdício mas sim como algo indispensável e fundamental. O profissional deve ter períodos de relaxamento, onde realize atividades que lhe dão prazer.

Manter o contacto com familiares, amigos e pares

Como seres sociais, precisamos dos outros para estarmos bem. É muito importante que o profissional passe tempo com as pessoas de que mais gosta e que conte com o seu apoio. O apoio dos pares, ou seja, de colegas da mesma profissão, também é fundamental para a partilha de experiências e o apoio e interajuda.

Expressar emoções

Negar ou evitar emoções negativas levará a um acumular de tensão que terá efeitos nefastos. O profissional de risco contacta com situações emocionalmente difíceis e, por isso, deve permitir-se a sentir e processar essas emoções e a expressá-las, junto daqueles com quem tem maior proximidade. O profissional não deve assumir-se como um ser invencível que nunca se fragiliza, pois isso afetará negativamente o seu trabalho. Deve, sim, assumir na totalidade a sua dimensão humana e contactar com as suas próprias emoções.

Adotar estratégias de coping saudáveis

Estratégias de coping são as estratégias de que dispomos para resolver problemas e gerir situações difíceis. É importante que os profissionais usem estratégias saudáveis, tais como:

  • Aceitar as suas emoções;
  • Desabafar com alguém próximo e expressar as suas emoções;
  • Envolver-se em atividades que sejam fonte de prazer;
  • Praticar estratégias de relaxamento;
  • Procurar obter mais informação sobre a situação e obter um maior controlo e previsibilidade;
  • Analisar as suas ações e aprender com os erros;
  • Ser capaz de colocar dúvidas, questões e pedir ajuda caso necessário.

Pelo contrário, devem evitar estratégias desadaptativas como isolar-se, negar ou evitar as emoções, recorrer ao álcool, tabaco, drogas ou à automedicação, pensar continuamente sobre a situação de uma forma negativa e persistente.

Manter as rotinas

É fundamental que o profissional mantenha as suas rotinas e procure dar continuidade, o mais possível, à sua normalidade. Isto permitirá obter uma maior sensação de controlo, previsibilidade e ajudará na gestão pessoal e emocional.

Evitar a culpabilização e diálogos internos de incompetência

Não é possível salvar toda a gente, e os erros são inevitáveis em qualquer trabalho. Por isso, o profissional de risco deve ter a consciência de que desempenha o seu trabalho da melhor forma e que é inevitável que por vezes as coisas corram menos bem. Por isso, deve evitar diálogos internos de incompetência, e em vez disso pensar “não fiz bem mas, nesta situação, fiz o melhor que poderia ter feito”.

Ser capaz de pedir ajuda

Deve existir no profissional uma adequada consciência de quando precisa de ajuda, bem como uma capacidade de recorrer a essa ajuda. Perceber quando não está a ser capaz de gerir a situação e estar atento ao surgimento de alguns sinais de alerta:

  • Não consegue deixar de pensar no que aconteceu ou está a acontecer;
  • Sente-se muito tenso ou com medo a maior parte do tempo;
  • Não consegue ter prazer com nada;
  • Não consegue ir trabalhar ou assumir as responsabilidades habituais;
  • Irrita-se ou é agressivo com as pessoas que o rodeiam;
  • Consome álcool, ou outras drogas, em excesso;
  • Faz automedicação;
  • Comporta-se de forma muito distinta do habitual antes do acontecimento.

Se estes sinais de alerta surgirem ou o profissional sentir que não está a conseguir lidar com a situação, deve recorrer a ajuda profissional. Esta pode ser acionada através da entidade ou instituição para a qual trabalha, mediante o apoio de pares e colegas ou recorrendo a um serviço externo.

Investir na formação

Um bom profissional é aquele que pretende crescer e desenvolver-se continuamente. Profissionais de risco devem não só aprimorar as suas competências técnicas mas também competências socioemocionais. Para isso, os profissionais devem procurar obter formação e preparação ao nível de domínios como a gestão de emoções, gestão da ansiedade, intervenção em crise, trauma, estratégias de coping, entre outros.

Se é profissional de risco ou conhece alguém que o seja, invista no seu autocuidado e lembre-se: para proteger é preciso ser protegido!

Diana Pereira

Amante de histórias, gosta de as ouvir e de as contar. Tornou-se Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde, pela Universidade do Porto, mas trouxe sempre consigo a escrita no percurso. Preocupada com histórias com finais menos felizes, tirou pós-graduação em Intervenção em Crise, Emergência e Catástrofe. Tornou-se também Formadora certificada, e trabalha como Psicóloga Clínica, com o objetivo de ajudar a construir histórias felizes, promovendo a saúde mental. Alimenta-se de projetos, objetivos e metas. No fundo, sonhos com um plano.

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