Negligência médica: o que é, consequências e prova

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A negligência médica é um tema genericamente conhecido pela grande maioria das pessoas, no entanto, gera bastante discussão por ser muito subjetivo.

De facto, embora a maioria das pessoas saiba o que é a negligência médica, a verdade é que cada caso é tão único e o corpo do ser humano é tão complexo, que se torna difícil aferir quando é que existe negligência médica ou um simples “azar” da vida.

É que a função do médico não é garantir a cura, mas sim dar o seu melhor para a conseguir, e não é justo que seja julgado e condenado quando a cura não era possível ou quando a ciência médica (que não é exata e em que continuamos todos os dias a descobrir coisas novas) não lhe permitia dar o diagnóstico certo.

Neste artigo, damos-lhe a conhecer o que é a negligência médica e em que situações ela pode realmente existir, baseando-nos na lei e no entendimento que tem vindo a ser adotado pelos nossos tribunais. Saiba ainda como fazer queixa por negligência médica. Boa leitura!

O que é a negligência médica?

Negligência médica é o nome que damos à situação em que, por indesculpável falta de cuidado seu, o médico deixa de aplicar os conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, lhe eram de exigir, em função da sua qualidade profissional, podendo dessa situação resultar danos graves para o paciente. Por outras palavras, podemos dizer que se trata de uma violação das “leges artis”.

O que são as “leges artis”?

“Leges artis” consiste no conjunto de regras científicas e técnicas e princípios profissionais que o médico tem a obrigação de conhecer e utilizar, tendo em conta o estado da ciência e o estado concreto do doente, sob pena de atuar com negligência médica.

Estas regras e princípios decorrem de normas do Código Deontológico (Estatuto da Ordem dos Médicos), de normas de orientação clínica, de pareceres de comissões de ética, de protocolos, de “guidelines”, de livros e de revistas especializadas, e, portanto, encontram-se em constante mutação, tendo em conta a evolução da ciência médica, e, por isso, o seu conteúdo será diferente em cada momento histórico.

Que condutas constituem negligência médica?

Existem várias condutas que podem constituir negligência médica, ou seja, a violação das “leges artis” e do dever de cuidado por parte do médico.

O erro é uma das causas mais relevantes de lesão física na atividade médica, resultando, na sua imensa maioria, não de um ato isolado, mas de uma sucessão de incidentes, tornando-se essencial averiguar quem, onde e como errou e qual o resultado que esse erro produziu na vida do doente.

Releve-se ainda que não basta aplicarmos um critério de “cuidado médio” que o médico deve adotar: também têm de ser tidos em consideração os conhecimentos e capacidades do concreto médico, uma vez que a falta desses conhecimentos ou capacidades pode excluir a culpa, ainda que o médico tenha o dever e a responsabilidade de manter atualizados os seus conhecimentos científicos e melhorar a sua capacidade profissional.

Portanto, nem todo o diagnóstico equivocado resulta censurável e origina responsabilidade, já que não é juridicamente exigível que o médico acerte em todos os casos: só incorre em responsabilidade o médico que diagnostica equivocadamente por manifesta negligência ou ignorância face aos sintomas ou por não empregar oportunamente os meios técnicos e exames que ajudam a evitar os erros de apreciação.

Pelo contrário, se o médico possui capacidades ou conhecimentos especiais superiores à média, terá de atuar com um cuidado acrescido, tendo em conta os conhecimentos que devia usar e não o fez. Quando não faz uso das faculdades que possui, integrará a negligência médica.

Salientamos algumas dessas condutas/erros:

  • Não ter em consideração o histórico do paciente;
  • Não examinar adequadamente ou não considerar todos os sintomas do paciente;
  • Não realizar as investigações devidas (exames e análises);
  • Não interpretar adequadamente aquelas investigações;
  • Não dar um tratamento correto ao paciente;
  • Administrar um medicamento errado ou a dosagem do medicamento errada;
  • Não se aperceber do agravamento da condição do paciente;
  • Não operar o paciente quando necessário;
  • Cometer erros na cirurgia;
  • Não prestar cuidados adequados no pós-operatório;
  • Falha ou ausência de monitoramento do paciente;
  • Erros administrativos (ex.: perder ou misturar registos de pacientes e observar o diagnóstico, tratamento ou medicação incorreto no prontuário do paciente).

Há negligência médica mesmo sendo as situações imprevisíveis?

A obrigação que o médico viola quando existe negligência médica não é uma obrigação de resultado, ou seja, de assegurar a todo o custo a cura, porque podem obviamente interferir no tratamento variáveis absolutamente incontroláveis e imprevisíveis.

De facto, estando preenchidos todos os requisitos de diligência aquando da intervenção do médico, ela não pode ser considerada um crime contra a integridade física ou contra a vida do doente, se o médico atuou de acordo com os conhecimentos técnicos e científicos, fazendo tudo o que estava ao seu alcance para tentar minorar a dor ou salvar o doente, indicando o tratamento considerado idóneo para a situação, ainda que, contudo, não obtenha sucesso.

É, pois, exigível que o médico preste os seus serviços, incluindo cuidados e conselhos, esclarecimentos dos riscos usuais e comuns em certos tratamentos, empregando toda a diligência, envidando todos os esforços ao seu alcance, pondo em prática os seus conhecimentos de acordo com a ciência e executando-os conforme os seus meios técnicos disponíveis e de acordo com as “leges artis” e um especial dever objetivo de cuidado, tendo como padrão um médico minimamente cuidadoso, diligente, sensível ao sofrimento alheio e aos bens jurídicos da vida e saúde.

Quais as possíveis consequências da negligência médica?

A negligência médica, traduzida em condutas como as listadas acima, pode causar consequências graves para o paciente e nomeadamente:

  • Piorar a doença do paciente;
  • Prolongar o tempo de recuperação do paciente;
  • Provocar danos físicos ou psicológicos duradouros;
  • Gerar despesas médicas acrescidas;
  • Gerar outras despesas (ex.: obras de adaptação em casa);
  • Incapacidade para o trabalho (com as correlativas consequências económicas – salário e prémios – e emocionais – vida ativa, independência, gosto pela atividade).

São estas consequências na vida do paciente que se tentará compensar com um processo por negligência médica: com este processo não se conseguirá obviamente “apagar” o passado e restabelecer a situação que existia antes da conduta de negligência médica, mas tentará compensar-se o paciente através da atribuição de uma indemnização em dinheiro.

A negligência médica é um crime?

Embora não exista nenhum tipo legal de crime com o nome “negligência médica”, este pode traduzir-se no crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das “leges artis” previsto no Código Penal, ou noutro tipo concreto de crime, dependendo da situação – por exemplo, se resultar a morte do paciente, trata-se de um crime de homicídio negligente.

É de salientar que, ao nível criminal, releva apenas a punição do erro médico que seja uma violação de “leges artis” específicas ou de um dever de cuidado muito concreto, ou seja, para que seja considerada a prática de um crime por negligência médica, tem de existir uma conduta por parte do médico que seja de óbvia violação de deveres médicos. Por outro lado, se todos os deveres e regras forem respeitados, então o resultado – risco – é permitido e por isso a conduta não é penalmente censurável.

De acordo com a lei, “as intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física”.

Mas, pelo contrário, se realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal, são punidos com:

Como fazer queixa por negligência médica?

Caso seja vítima de negligência médica, a forma de se defender dependerá da sua pretensão e do facto de a clínica ou hospital em que foi assistido ser público ou privado. Assim, se pretender:

  • apenas reportar o caso de negligência médica, poderá:
    • expor a situação no livro de reclamações ou no gabinete do utente; ou
    • apresentar queixa na Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS).
  • que o médico seja responsabilizado ao nível disciplinar:
    • Expor o caso à Ordem dos Médicos (existe no sítio da internet da Ordem dos Médicos um formulário de reclamação do doente).
  • que o médico seja responsabilizado criminalmente, poderá:
    • Apresentar queixa-crime no Ministério Público para abrir um processo-crime em tribunal.
  • apenas ser indemnizado pelos danos que lhe foram causados:
    • No caso de ter sido assistido no serviço público, deverá intentar uma ação no Tribunal Administrativo;
    • No caso de ter sido assistido no serviço privado, deverá intentar uma ação no Tribunal Cível.

Como se prova a negligência médica?

No âmbito da negligência médica, terá de se provar:

  • a existência de uma conduta que constitua negligência médica;
  • os danos provocados pela negligência médica;
  • o “nexo de causalidade” entre a conduta e os danos (ou seja, provar que, não fosse aquela conduta negligente do médico, aqueles danos não teriam ocorrido).

Esta prova pode ser feita através de:

  • documentos (ex.: histórico clínico do paciente; nota de alta médica; exames médicos, etc.);
  • testemunhas (ex.: familiares do paciente que se deslocaram com ele ao hospital; funcionários do hospital);
  • peritos (ex.: outros médicos que possam dar conhecimentos essenciais ao tribunal sobre a doença e os tratamentos normalmente administrados).

– este artigo foi redigido por uma jurista com base no Código Penal, Código do Processo Penal, Código Civil, Código do Processo Civil, Estatuto da Ordem dos Médicos e diversa jurisprudência.

Susana Lima

Sempre com a missão de informar e ajudar as pessoas nesta área tão complicada, licenciou-se em Direito pela Universidade do Porto e abriu um escritório próprio como advogada, acreditando ser um pequeno peso que equilibra mais os pratos da balança da justiça.