Psicanálise: o que é, conceitos, aplicações e evolução

psicanalise

A psicanálise é uma das primeiras abordagens da psicologia e atualmente é também uma forma de intervenção, por meio da psicoterapia psicanalítica. Ouvimos muitas vezes o termo psicanálise, mas nem sempre temos uma noção exata do que é, de facto, a psicanálise. Neste artigo pretendemos esclarecer estas dúvidas, esclarecendo o que é a psicanálise e quais as suas aplicações.

Como surgiu a psicanálise?

A psicanálise surgiu como ciência no início do século XX, com os trabalhos de Sigmund Freud resultantes da sua observação de pacientes psiquiátricos. Freud começou a interessar-se pelo uso da hipnose ao tomar conhecimento de que Breuer, um neurologista, descrevia que ao trabalhar com uma paciente esta, ao recordar situações traumáticas do passado por meio de um estado hipnótico, obtinha um alívio dos seus sintomas. 

Freud, ao perceber que existiam factos que a pessoa não conseguia recordar voluntariamente, mas que tinham grande influência no seu comportamento, estabeleceu a existência do “inconsciente”. O “inconsciente” seria então uma parte da nossa vida mental que determinaria grande parte das nossas decisões e ações. Para compreender melhor a questão do inconsciente, imagine que define para si mesmo que a partir de amanhã vai alterar um determinado hábito.

No entanto, depois e sem se aperceber, acaba por o repetir ao agir em “modo piloto automático”. Aquelas pequenas coisas que fazemos sem nos aperceber, o que dizemos sem perceber bem “de onde nos saiu”, os sonhos que temos e nos deixam a pensar “mas porque fui sonhar com isto?” são muitas vezes reflexo do inconsciente.

Em 1885 Freud trabalhou com Charcot com o objetivo de aprender o método da hipnose. Nesta aprendizagem Freud desenvolveu outros métodos que permitiriam ter acesso ao inconsciente. Um deles foi a livre associação de ideias, que permitira aceder a memórias reprimidas. Descobriu ainda que os sonhos eram uma importante expressão do inconsciente, sendo através deles expressos desejos e fantasias reprimidos.

Assim, Freud dividiu a mente em inconsciente, pré-consciente e consciente, três diferentes níveis de consciência que se tornaram conceitos fulcrais da psicanálise. Os sintomas e o mal-estar da pessoa seriam assim um reflexo da influência do inconsciente, sendo importante tornar estas influências conscientes, ou seja, perceber que influências (como memórias ou traumas) estavam presentes e de que forma causavam os sintomas.

A psicanálise instituiu-se, assim, como uma ciência com conceitos e técnicas próprias. A psicanálise aplicada enquanto psicoterapia procuraria assim refletir, como um espelho, os conflitos internos dos pacientes.

Em suma, a partir do estudo sistemático de pacientes que apresentavam sofrimento psíquico e da aplicação do método analítico, Freud introduziu uma série de conceitos e técnicas que serviriam de fundamentos para a psicanálise.

Como evoluiu a psicanálise?

Desde os estudos de Freud até ao presente a psicanálise sofreu transformações e uma evolução importante. Embora muitos dos conceitos originais tenham permanecido inalterados, outros transformaram-se e outros novos surgiram. Um importante autor de novos conceitos foi Klein, que através dos seus estudos percebeu que as relações que o bebé tem com os seus cuidadores no início da sua vida formam a pedra angular para a sua vida psíquica.

Assim, postulou que a mente é ocupada com modelos internos de relações com os outros e com o próprio, construídos desde o nascimento e reconstruídos ao longo da vida. Estes modelos internos de como funcionamos e como os outros funcionam vão sendo utilizados ao longo da vida para apreendermos e interpretarmos a realidade.

Um outro autor importante para a evolução da psicanálise foi Bion, que descreveu a importância da capacidade de conter e descodificar sentimentos de angústia e sofrimento em algo que possa ser pensado e compreendido.

O que é hoje a psicanálise?

Podemos considerar a psicanálise como uma área clínica e de investigação teórica da mente humana. Para além de ser um campo de conhecimento e uma teoria da personalidade, é também um procedimento de psicoterapia. Embora muitas vezes usemos a palavra psicanálise como sinónimo de psicoterapia, na realidade ela é mais abrangente do que isso e inclui todo um campo de conhecimento.

Assim, a psicanálise pode ser definida a partir de três dimensões distintas, mas que se articulam entre si:

  • Procedimento para investigar os processos mentais que de outra forma seriam inacessíveis;
  • Teoria sobre o funcionamento da mente humana, estudando o que está para além do consciente, sendo muitas vezes designada de “metapsicologia”;
  • Método para o tratamento de perturbações psíquicas, nomeadamente as neuróticas. Na psicanálise há a dimensão terapêutica que se expressa pelas transformações psíquicas que são induzidas pelo processo psicanalítico. Este processo produz uma alteração na relação da pessoa com o seu inconsciente, o que permite um alívio dos sintomas e do sofrimento interior;
  • Método de pesquisa e forma de observar fenómenos culturais e sociais.  

A psicanálise surgiu com o objetivo de compreender melhor porque é que determinadas perturbações mentais aconteciam e como poderiam ser tratadas. Inclui o método de investigação das características da mente e da sua dimensão inconsciente, a ação terapêutica e transformativa e a teoria e corpo de conhecimento acerca do comportamento humano e da mente.

Para compreender melhor a psicanálise é importante entender alguns dos seus conceitos:

  • Inconsciente: diz respeito a uma parte da consciência na qual residem forças alheias à nossa vontade e que determinam em grande parte as nossas escolhas e comportamentos. São parte do inconsciente os desejos, as fantasias e os impulsos, as representações internalizadas do mundo e os mecanismos de defesa que nos protegem do contacto indesejável com aspetos da realidade e do inconsciente;
  • Desenvolvimento psicossexual: foi algo bastante estudado por Freud, e que se refere à maturação progressiva das funções corporais centrada em determinadas zonas erógenas (boca, ânus ou genitais);
  • Id, Ego e Superego: são 3 conceitos estruturais da mente. O Ego corresponde ao lugar pré-consciente da mente, onde a pessoa exerce a repressão e consolida vários impulsos e tendências antes de as colocar em ação. Ou seja, o ego é o mediador entre os impulsos do inconsciente (ou Id) e as exigências do superego. O ego regula os nossos desejos e impulsos. O Id corresponde ao inconsciente, onde residem impulsos, fantasias e memórias reprimidas. Por fim, o Superego é o guia e consciência da mente, detentor das proibições e das ideias a prosseguir, é quem “comanda”, é, no fundo, a nossa personalidade. É nele que estão os nossos valores e ideias. É uma espécie de juiz que comanda e determina o nosso comportamento de acordo com princípios e aspetos morais. Se o superego for muito exigente, pode anular as escolhas do ego e causar um conflito interno;
  • Associação livre: consiste em permitir que o paciente fale de tudo o que lhe vier à mente, mesmo que lhe pareça não ter sentido, para que seja possível o terapeuta identificar o conteúdo inconsciente através do seu discurso;
  • Resistência: consiste na existência de forças profundas e alheias à vontade da pessoa que impedem o contacto com o inconsciente. Para compreendermos melhor o que são as resistências, imagine por exemplo que se envolve num conflito e este conflito ativa em si emoções muito fortes e uma vontade de agredir a outra pessoa. O seu consciente impede de o fazer pois sabe que seria errado. No entanto, o desejo inconsciente permanece e pode advir de experiências adversas que teve no passado. Para evitar o confronto doloroso com essa experiência, a mente bloqueia essas memórias, o que se trata de uma resistência;
  • Transferência: consiste em o paciente projetar na relação com o terapeuta alguns dos padrões disfuncionais das suas relações com os outros, consigo mesmo e com o mundo, permitindo elaborar os seus conflitos internos para que estes possam ser resolvidos;
  • Campo analítico: diz respeito à relação terapêutica em psicanálise, ou seja, à relação entre terapeuta e cliente. Do campo analítico fazem parte o diálogo, as expectativas do cliente e do terapeuta, as tarefas que cada um tem, as experiências subjetivas individuais, etc;
  • Neutralidade: refere-se à postura do terapeuta em psicanálise, ou seja, este deve ter uma postura neutra procurando não dar conselhos, não emitir julgamentos, não tirar partido, não falar da sua vida pessoal, não punir nem recompensar o paciente, etc;
  • Interpretação: é a principal ferramenta de trabalho do terapeuta em psicanálise, sendo o principal objetivo da interpretação tornar conscientes os aspetos do inconsciente, por exemplo, tornar visíveis e claros os traumas reprimidos do paciente, permitindo identificar os seus mecanismos de defesa, os seus conflitos internos, os seus desejos ou fantasias reprimidas, etc.

Em que consiste a psicanálise como terapia?

A psicanálise como forma de terapia constitui a psicoterapia psicanalítica ou psicoterapia de orientação analítica. A psicoterapia psicanalítica procura não só reduzir os sintomas de mal-estar emocional que o paciente apresenta, mas também procurar ampliar os seus recursos internos para pensar, criar e relacionar-se consigo mesmo, com os outros e com o mundo.

O terapeuta, em psicanálise, ajuda a pessoa a obter novos conhecimentos, ou insights, sobre si e sobre questões que estão no seu inconsciente e sobre as quais a pessoa não tem consciência direta. Assim, a psicanálise em termos terapêuticos irá ajudar o paciente a tornar-se mais consciente do se mundo interior e de aspetos desconhecidos do mesmo, como pensamentos, emoções, memórias, fantasias… Ao ter contacto com estes aspetos do inconsciente, nomeadamente eventuais memórias reprimidas ou traumas, o paciente obtém um alívio dos seus sintomas e consegue também desenvolver os seus recursos internos e ter uma autoconsciência mais alargada, permitindo assim atingir os seus objetivos de forma mais eficaz.

O método utilizado na psicanálise é, essencialmente, a cura pela fala, ou seja, o recurso à associação livre. Isto significa que em psicanálise o paciente é convidado a dizer o que lhe venha à mente, sem qualquer tipo de restrição. Desta forma é possível aceder a aspetos inconscientes e conflitos não-resolvidos. Com a ajuda das intervenções do terapeuta, o paciente consegue progressivamente adquirir uma nova compreensão de si e do seu sofrimento. A aplicação repetida e sistemática destes novos insights em várias situações permite um processo de elaboração, que torna a pessoa cada vez mais capaz de reconhecer os seus conflitos internos e resolvê-los, colocando-os em perspetiva.

As sessões de psicanálise têm geralmente uma duração de cerca de 50 minutos e podem ocorrer várias vezes por semana, num trabalho intensivo. Estas questões práticas podem ser alteradas e ajustadas, sendo definidas no início do processo terapêutico. A duração total de um processo de psicanálise depende de caso para caso, mas geralmente é um processo longo que pode durar anos.

A quem se pode aplicar a psicanálise?

A psicanálise enquanto terapia, ou psicoterapia psicanalítica, aplica-se a qualquer pessoa que apresente problemas psíquicos recorrentes que limitam o seu bem-estar subjetivo e a sua funcionalidade nos diversos domínios de vida. Geralmente estes problemas são o reflexo de conflitos internos, que conduzem, por sua vez, a dificuldades nos relacionamentos ou noutras esferas. Quando estes problemas não são tratados, podem ter um grande impacto na vida da pessoa e nas suas escolhas.

Uma vez que geralmente a origem destes problemas psíquicos é profunda e não diretamente identificável, a psicanálise ajudará a identificar causas que residem ao nível do inconsciente, e que de outra forma dificilmente seriam resolvidos.

Para que a pessoa possa ser indicada para psicoterapia em termos da abordagem da psicanálise, é importante verificarem-se alguns critérios:

  • Ter sido a pessoa a procurar espontaneamente a psicoterapia;
  • Disponibilidade de tempo;
  • Capacidade cognitiva mínima para conseguir compreender e acompanhar os mecanismos da psicoterapia;
  • Boa capacidade em termos de teste de realidade;
  • Adequada capacidade de adaptação;
  • Expectativas realistas;
  • Existência de conflitos ou sofrimento psíquico;
  • Curiosidade psíquica;
  • Tolerância à frustração;
  • Difusão de identidade;
  • Capacidade de assumir a responsabilidade e o compromisso;
  • Motivação para a mudança;
  • Boa relação terapêutica.

A psicanálise também pode ser aplicada com crianças e adolescentes, quando se verificam problemas persistentes como ansiedade, depressão, agressividade, problemas de sono, problemas obsessivo-compulsivos, problemas do comportamento alimentar, entre outros. Os métodos da psicanálise, nestes casos, são ajustados para se adequarem às características específicas destas faixas etárias e fases do desenvolvimento. Podem, por exemplo, ser utilizados métodos lúdicos como brinquedos ou desenhos, para ajudar a criança a expressar melhor as suas preocupações.

A psicanálise também pode ser aplicada a casais e famílias, aplicando os conceitos e insights da psicanálise na dinâmica específica existente entre um casal ou numa família, onde se verificam conflitos recorrentes.

Quem é o psicanalista?

O psicanalista é o terapeuta que exerce a prática terapêutica baseada na psicanálise. Por outras palavras, é o profissional que intervém com os pacientes tendo por base os conceitos e a linha teórica da psicanálise.

A formação em psicanálise pode ser feita por profissionais de saúde em áreas terapêuticas, por exemplo psicologia ou medicina. A formação em psicanálise é extensa, dura vários anos e envolve muitas horas de estudo e análise. Além disso, para se tornar psicanalista o profissional precisa, no âmbito da sua formação, de passar por um processo de psicanálise enquanto cliente. Em Portugal existe a Sociedade Portuguesa de Psicanálise, que é uma associação científica com o objetivo de investigar, divulgar e promover a prática da psicanálise, desenvolvendo atividade formativa para psicanalistas nos Institutos Superiores de Psicanálise.

Diana Pereira

Amante de histórias, gosta de as ouvir e de as contar. Tornou-se Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde, pela Universidade do Porto, mas trouxe sempre consigo a escrita no percurso. Preocupada com histórias com finais menos felizes, tirou pós-graduação em Intervenção em Crise, Emergência e Catástrofe. Tornou-se também Formadora certificada, e trabalha como Psicóloga Clínica, com o objetivo de ajudar a construir histórias felizes, promovendo a saúde mental. Alimenta-se de projetos, objetivos e metas. No fundo, sonhos com um plano.