Infelizmente, a mutilação genital feminina é uma realidade para cerca de 200 milhões de meninas e mulheres que vivem nas mais diversas regiões do planeta. Os dados são da Organização das Nações Unidas (ONU), que revelam ainda os lugares onde a prática está concentrada: embora a maioria dos casos ocorra em países de África e do Oriente Médio, são ainda registradas ocorrências na Ásia e na América Latina e entre populações imigrantes que vivem na Europa Ocidental, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia.
A mutilação genital feminina, que também é conhecida como circuncisão feminina, remove parte ou a totalidade dos órgãos sexuais externos do corpo da mulher (em nome da religião, dos costumes, da sexualidade e da pressão social), submetendo-a a uma série de complicações que vão desde o risco à saúde até ao abandono escolar.
Em determinadas culturas, a mutilação genital é vista como um ritual de passagem da infância para a vida adulta, não obstante, viola o direito humano de integridade física e emocional, sobretudo por ser realizada sem o consentimento da vítima. Além disso, expõe as vítimas a situações extremamente traumáticas muitas vezes ainda durante a infância.
O que é, tipos e ocorrências
A mutilação genital feminina consiste no corte ou na remoção deliberada dos lábios e clitóris. O procedimento é feito sem anestesia, supervisão médica, medicação ou condições mínimas de higiene, visto que o mesmo objeto cortante é utilizado em várias raparigas, cujo grupo etário varia entre os 5 e os 14 anos de idade.
Existem três tipos predominantes de mutilação genital feminina:
- Clitoridectomia: remoção parcial ou total do clitóris e da pele no entorno;
- Excisão: remoção parcial ou total do clitóris e dos pequenos lábios;
- Infibulação: corte ou mudança de posição dos grandes e dos pequenos lábios. Geralmente a vulva é costurada, deixando um pequeno espaço para a passagem da urina e da menstruação. É considerado o tipo mais agressivo de mutilação feminina, cujo objetivo é evitar que a mulher tenha relações sexuais antes do casamento.
A clitoridectomia e a excisão predominam em 90% dos casos, e os restantes, 10%, correspondem à infibulação. Existe ainda um outro tipo de mutilação genital, que engloba todos os outros tipos de mutilação descritos anteriormente, isto é, perfuração, incisão, raspagem e cauterização do clitóris ou da área genital.
Mutilação genital feminina em Portugal
Em Portugal, a prática acontece em razão da existência de vários fluxos migratórios, visto que anualmente chegam a Portugal milhares de migrantes de países onde a MGF é realizada.
Não obstante, não é ainda possível apontar o número exato de mulheres que já sofreram mutilação genital feminina no nosso país; todavia, é possível afirmar que estas existem e que muitas outras tantas estão situação de risco, conforme dados levantados pelo European Institute for Gender Equality (EIGE) e pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL).
De acordo com esse estudo, das 5835 mulheres com até os 18 anos de idade, residentes em Portugal e provenientes de países onde a prática da mutilação genital é comum, entre 269 e 1342 estão vulneráveis à mutilação, números que assustam e que mostram a necessidade premente de intervenção advindas de políticas públicas capazes de coibir tal agressão.
Tradição, controlo sexual e pressão sexual
Como já referimos, a mutilação genital feminina é motivada, principalmente, por tradições e costumes, sexualidade e pressão social. Entenda:
- Tradições e costumes: a mutilação genital representa um ritual de passagem da infância à vida adulta, estimulada pelos mais velhos, que encaram a prática como parte dos valores tradicionais da sociedade;
- Sexualidade da mulher: a mutilação genital é vista como um sinal de honra, pois é a garantia de que a mulher permanecerá virgem até ao casamento. Esta conceção é bastante comum em países como o Egito, o Sudão e a Somália, onde a infibulação é o tipo mais comum de mutilação genital feminina. Ao serem submetidas a essa agressão, as mulheres têm a sua vida sexual controlada, bem como o seu prazer sexual completamente inibido;
- Pressão social: por ser uma prática tradicional, a mutilação genital é vista como uma obrigação social, pois apenas as raparigas que forem submetidas a esta prática recebem o reconhecimento da comunidade, que as passa a considerar mulheres adultas e integrantes do grupo.
A Organização Mundial da Saúde reconhece ainda um outro fator, nomeadamente, o da higiene e estética, pois parte externa da genitália da mulher é considerada como “suja” e desagradável para as comunidades que ainda praticam a mutilação genital feminina.
Qual a relação com o abandono escolar?
A partir do momento em que meninas são submetidas à mutilação genital, começam a integrar a comunidade adulta; desta forma, frequentar uma escola deixa de ser relevante. Depois de mutiladas, ganham o respeito e a admiração nas comunidades e são estimuladas ao casamento ainda na infância, por isso, é muito comum que abandonem a escola.
O abandono escolar é um dos motivos da desigualdade educacional e económica entre homens e mulheres, o que as faz dependentes dos respetivos maridos, perpetuando assim um ciclo de submissão que as obriga a viver situações não condizentes com a idade que possuem.
O casamento infantil, consequência da mutilação genital feminina, já obrigou mais de 700 milhões de mulheres a casarem-se ainda na infância, o que as tornas potenciais vítimas de violência doméstica. Além disso, são inúmeros os casos de gravidez precoce, o que muitas vezes coloca em risco a vida da mãe e do filho.
Um risco à saúde da mulher
Algumas culturas defendem que a mutilação genital feminina apresenta benefícios para a saúde; todavia, essa afirmação não procede, visto que a mutilação genital provoca consequências graves para as mulheres.
Entre as muitas consequências a mais dramática é o trauma, uma vez que o procedimento é extremamente doloroso e agressivo, realizado sem anestesia, sem acompanhamento médico e sem condições de higiene, o que facilita a transmissão de doenças. Além disso, existe ainda o risco de hemorragias, infeções, lesões e úlceras na região mutilada, intercorrências que podem levar à morte.
A mutilação genital feminina é responsável ainda por complicações durante a gravidez, aumentando em 50% o risco de morte materna e infantil. De acordo com a OMS, as mulheres mutiladas estão mais suscetíveis à hemorragia pós-parto, e os seus filhos mais vulneráveis ao óbito logo após o nascimento.
Uma prática perigosa que precisa ter fim
A mutilação genital feminina é uma prática perigosa, reconhecida por tratados internacionais, regionais e documentos consensuais como uma violação aos direitos inerentes à vida.
A OMS reconhece a gravidade da prática tanto no âmbito da saúde quanto na esfera social e defende a criação de projetos multissetoriais permanentes com a participação de líderes das comunidades praticantes do ritual, visando discutir a gravidade da mutilação genital feminina a fim de combatê-la. Este também é o propósito da ONU, que pretende acabar com a mutilação genital feminina até o ano de 2030; para isso, tem vindo a adotar esforços para por um fim a esta prática e assim proteger meninas e mulheres que correm o risco de serem mutiladas.
Felizmente, mais de 24 milhões de pessoas em quase 9 mil comunidades comprometeram-se a abandonar a mutilação genital feminina, de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Estes dados mostram-nos que existe uma mudança em curso, embora ainda sejam necessários esforços e dedicação para que a prática seja revista e, de uma vez por todas, abolida.