A mitomania diz respeito a um transtorno de mentira compulsiva. Todas as pessoas mentem em determinadas ocasiões, e a mentira pode ser mais ou menos grave, mas geralmente é feita de forma consciente e por alguma razão específica. No entanto, quando a mitomania está presente, a pessoa apresenta uma compulsão para a mentira, que não consegue controlar. Trata-se, portanto, de um transtorno.
Neste artigo pretendemos explicar de forma clara o que é o transtorno da mitomania e porque acontece, bem como as formas de tratamento deste transtorno.
Porque mentimos?
A mentira faz parte do ser-humano tanto quanto a verdade. Podemos mentir pelos mais diversos motivos: proteção pessoal, ganância, obtenção de desejos ou necessidades… Podemos compreender melhor as razões para a mentira considerando as necessidades e motivações humanas.
Uma das necessidades humanas fundamentais é a necessidade de pertença e também a necessidade de estima. Muitas vezes estas necessidades estão na origem da mentira: mentimos porque precisamos de pertencer, de sermos aceites pelo outro… Imaginemos, por exemplo, que está numa situação social onde sente dificuldade em se integrar e, para o conseguir, usa a mentira para se destacar ou se tornar mais interessante para a conversa. A necessidade de pertença e de agradar o outro estaria na origem desta mentira.
Existem outros diferentes motivos na origem da mentira. Por vezes as pessoas podem mentir por diversão, pois a mentira e a tentativa de não ser apanhado geram uma espécie de adrenalina. Nestas situações, a mentira pode gerar uma emoção semelhante àquela que obtemos quando realizamos algo difícil, e a adrenalina nestas situações pode ser viciante.
A mentira também pode ter origem nalgum distúrbio neurológico ou de personalidade, em que a pessoa tem efetivamente dificuldade em distinguir a realidade da fantasia, não tendo por vezes consciência total de que está a mentira e não tendo consciência dos factos.
Também as falsas memórias podem ser um motivo para a mentira, em determinadas ocasiões. Por exemplo, numa determinada situação, duas pessoas podem ter memórias tão distintas do que aconteceu que as histórias praticamente se contradizem. Isto acontece porque a forma como gravamos a informação de uma dada situação é influenciada pelas nossas emoções e pela forma como vivemos e interpretamos o acontecimento. A nossa memória dos acontecimentos pode ser distorcida e alterada por vários fatores e a nossa perceção não é 100% fidedigna porque é influenciada por fatores pessoais.
Por fim, importa recordarmos os motivos básicos e simples pelos quais todos mentimos:
- Para agradar os outros;
- Para obter a verdade;
- Para evitar prejuízos ou sermos prejudicados de alguma forma (ex: mentir sobre o porquê de ter faltado ao trabalho, para evitar ser despedido);
- Para evitar problemas na relação com o outro ou conflitos (ex: mentir sobre os motivos pelos quais chegou tarde a casa, para evitar uma discussão com o seu companheiro ou mesmo para evitar pôr em causa a relação);
- Par impressionar alguém;
- Para obter benefícios;
- Para evitar magoar alguém;
- Para evitar a exposição (ex: dizer que está tudo bem consigo, quando na realidade não está).
Assim, estes são os motivos naturais pelos quais todos mentimos em determinadas ocasiões. São, portanto, distintos daquilo que ocorre na mitomania, em que a mentira não é motivada por necessidades concretas, mas torna-se antes uma compulsão praticamente impossível de controlar para a pessoa.
O que é a mitomania?
A mitomania consiste na compulsão para a mentira ou na mentira patológica, sendo por isso considerada um transtorno psicológico que se caracteriza por mentir compulsivamente, mesmo sem que existam motivos concretos ou sem que essa mentira conduza a algum tipo de benefício. Pode incluir mentir em diversas situações e relativamente a assuntos muito variados. Devido ao facto de a pessoa mentir tantas vezes e de forma compulsiva, pode chegar a ter dificuldade em lembrar-se do que é verdade e do que é invenção.
A pessoa com mitomania pode ter consciência de que está a mentir, mas existe uma compulsão, ou seja, a pessoa não consegue controlar o ato de mentir.
A pessoa com mitomania tende a contar mentiras credíveis, ou seja, as outras pessoas tendem a acreditar nas mentiras contadas. Muitas vezes estas mentiras têm até algum elemento verídico, embora outras partes sejam ficcionais ou inventadas. Ou seja, isto quer dizer que a pessoa com mitomania não está em delírio nem está crente das suas mentiras, ela sabe que está a mentir, mas não consegue evitá-lo. Como tal, quando confrontada com o facto de estar a mentir, ou quando a sua mentira é descoberta, a pessoa com mitomania pode, ainda que contrariada, admitir a mentira. Tentará, ainda assim, a todo o custo não ser apanhada ou fazer com que as pessoas acreditem nela, para poder continuar a mentir.
Para que possamos falar de um transtorno de mitomania, a mentira deve ser constante e a pessoa deve apresentar um padrão duradouro de mentira compulsiva. Ou seja, mentir ocasionalmente ou em determinadas circunstâncias, com um motivo específico, não se trata de mitomania, já que toda a gente mente. O transtorno de mitomania caracteriza-se por um padrão duradouro e compulsivo de mentira.
A motivação por detrás da mitomania tem geralmente origem emocional (mentir para obter atenção, ou por medo ou vergonha) e não tem um objetivo ou benefício externo. Ou seja, a pessoa não mente especificamente para conseguir obter algo, vender um produto, manter um relacionamento, esquivar-se de determinada consequência… Ela mente inerentemente por razões emocionais e sem um motivo instrumental concreto.
Por essa razão, geralmente as mentiras da pessoa com mitomania são mentiras que tendem a apresentar a pessoa de forma favorável, fazendo-a ficar bem-vista aos olhos dos outros. Por exemplo, a pessoa conta mentiras que a fazem parecer extremamente dotada, corajosa, competente, feliz, interessante…
Quias os sinais da mitomania?
Identificar um mentiroso compulsivo pode não ser tarefa fácil. No entanto, alguns sinais podem ser importantes para esta identificação:
- A pessoa com mitomania mente em praticamente todos ou quase todos os contextos da sua vida – vida pessoal, profissional, familiar…
- A mitomania faz com que a pessoa se envolva numa complexa rede de mentiras, de tal forma que eventualmente é “apanhada” na sua própria mentira;
- As mentiras que a pessoa com mitomania conta são caracterizadas por a fazer ter uma imagem extremamente favorável e positiva, inventando façanhas e feitos muito positivos ou grandiosos;
- Apesar de aparentar ter uma boa autoestima e autoconfiança, em pequenas coisas é possível observar que na realidade a pessoa com mitomania revela uma grande fragilidade;
- Por detrás das mentiras contadas pela pessoa, há uma extrema necessidade de ser aceite e estimada;
- Há um excesso de emoção – felicidade ou tristeza – nas histórias que a pessoa conta, quase como se as dramatizasse;
- A pessoa conta histórias altamente detalhas, sem existir um motivo aparente;
- A pessoa elabora muito as respostas que dá a perguntas simples;
- A pessoa descreve demasiado factos e questões rotineiras;
- Existem diversas versões na mesma história contada pela pessoa;
- A pessoa está constantemente a tentar fortalecer e engrandecer a sua imagem, através de histórias positivas sobre si mesma;
- Muitas vezes há uma história de eventos adversos ou mesmo traumas na infância.
Quais as causas da mitomania?
A mitomania pode manifestar-se por diversas causas, e geralmente há uma variedade de fatores que contribuem para a existência do transtorno.
Por vezes a mitomania surge como uma forma de proteção ou de alívio da dor psicológica e emocional. Imaginemos por exemplo o caso de uma criança que sofre de maus-tratos em casa. Para se proteger e criar uma espécie de realidade alternativa, começa a contar aos colegas e amigos que tem uma relação muito boa com os pais e que o ambiente em casa é positivo. Esta criança cria para si uma espécie de realidade alternativa, mentindo compulsivamente sobre ela de tal forma que por vezes pode confundir realidade e fantasia.
Assim, muitas vezes o trauma psicológico está na origem da mitomania, sobretudo traumas vividos na infância. O medo do abandono e um ambiente familiar disfuncional levam a pessoa a encontrar na mentira um mecanismo de defesa e uma forma de proteção. Muitas vezes as pessoas que sofrem de mitomania crescem em contextos marcados por diversas desilusões, mentiras e carências. O mundo de fantasia acaba por surgir como um escudo de proteção contra a dureza da realidade.
A mitomania surge também por vezes associada ao desejo de pertença e de integração, motivada frequentemente por uma carência de afeto e de estima. Ávida de atenção, a pessoa inventa mentiras para obter dos outros a atenção desejada, por considerar que a mentira será sempre mais interessante do que a verdade. Há, portanto, uma carência emocional acentuada na origem da mitomania, pelo menos em muitos dos casos.
É também importante referir que os fatores intrínsecos também contribuem para o surgimento e manutenção da mitomania, designadamente características genéticas ou hereditárias, como o facto de estarem presentes transtornos psicológicos na família, e características ou traços de personalidade. Também o facto de a pessoa sofrer de algum outro transtorno psicológico torna o risco para a mitomania acrescido.
Características neurológicas na mitomania
Alguns estudos científicos têm apresentado achados impressionantes ao nível da mitomania. Estes estudos demonstraram que o cérebro das pessoas com mitomania apresenta diferenças em relação ao cérebro de pessoas sem este problema. Nas pessoas com mitomania, o cérebro apresenta mais 26% de massa branca, que é responsável pela agilidade do raciocínio, aumentando assim a capacidade cognitiva da pessoa. Desta forma, os mentirosos compulsivos, ao terem uma maior percentagem de massa branca, terão maior agilidade para formular o pensamento e inventar mentiras.
Por outro lado, as pessoas que sofrem de mitomania parecem apresentar uma menor quantidade de massa cinzenta. A massa cinzenta é responsável pelo processamento de informações, estando ligada ao comportamento moral. Deste modo, os mentirosos compulsivos, ao terem menor quantidade de massa cinzenta, teriam assim menos capacidade de processar as situações do ponto de vista moral e de agir moralmente.
Quais as consequências da mitomania?
A mitomania acarreta para a pessoa diversas consequências, a nível pessoal e profissional, nomeadamente nos relacionamentos interpessoais. Pelo facto de a pessoa mentir de forma constante e compulsivamente, acaba por se contradizer por diversas vezes, o que é percebido pelas pessoas que a rodeiam e com as quais tem uma relação, tornando a convivência difícil. Isto pode levar até a que a pessoa perca todos seus relacionamentos.
Além das consequências sociais, outras consequências podem decorrer da mitomania. Muitas vezes este distúrbio pode transformar-se em distúrbios mais graves, nomeadamente outros transtornos psicológicos ou psiquiátricos, como o transtorno de personalidade antissocial. O afastamento social e a baixa autoestima que a pessoa sente pode também originar transtornos depressivos ou de ansiedade.
Adicionalmente, a mitomania está associada muitas vezes a outros comportamentos compulsivos, por exemplo a compulsão alimentar ou o consumo compulsivo de álcool ou de outras substâncias.
Qual o tratamento para a mitomania?
É difícil para as pessoas que sofrem de mitomania admitirem a necessidade de ajuda e procurarem tratamento. Primeiramente, é-lhes difícil assumirem-se como mentirosos compulsivos.
Além disso, é difícil aceitarem parar de mentir ou fazer algo por isso, porque a mentira traz-lhes muitas vezes a atenção que não acreditam conseguir de outra maneira. Por isso, frequentemente as pessoas que sofrem de mitomania só procuram efetivamente ajuda quando começam a perder as pessoas à sua volta e se veem sozinhas, ou quando são fortemente incentivadas por alguém próximo que lhes é muito importante.
O tratamento da mitomania pode incluir psicoterapia e acompanhamento psiquiátrico. Como vimos, muitas vezes a mitomania está associada a uma carência afetiva e até a sintomas depressivos. Como tal, a psiquiatria pode ser importante para o tratamento farmacológico destes sintomas.
Já a psicoterapia irá ajudar a pessoa que sofre de mitomania a refletir, monitorizar e gerir os seus pensamentos, emoções e comportamentos, desenvolvendo um maior autocontrolo, promovendo a autoestima e desenvolvendo estratégias práticas para ser mais assertiva e conseguir dizer a verdade, encontrando formas mais saudáveis de obter a atenção, afeto e aprovação que deseja, sem que para isso tenha de mentir.
Inicialmente, no processo psicoterapêutico, procura-se motivar a pessoa para a mudança, através de um primeiro reconhecimento da doença e das suas consequências, bem como das possíveis causas. A pessoa é ajudada a refletir sobre as carências existentes e as insatisfações que conduzem à necessidade de mentir e produzir um ambiente fantasioso.
Depois desta aquisição de consciência e motivação para a mudança, é importante a pessoa identificar os gatilhos que a levam a mentir e de que forma pode alterar o padrão comportamental, controlando a compulsão para a mentira e desenvolvendo estratégias mais eficazes.
O processo terapêutico pode ser mais longo ou mais curto, dependendo das circunstâncias e de cada caso específico. A psicoterapia é eficaz nos casos de mitomania e revela-se assim extremamente importante para que a pessoa consiga readquirir o controlo da sua vida e obter um maior bem-estar e equilíbrio emocional.