Sair do armário: assumir a própria sexualidade

O sair do armário é um processo envolto em dúvidas e alguns medos

“Sair do armário” é uma expressão usada para designar a revelação da orientação sexual ou identidade de género a alguém, quando esta é não-normativa. Usa-se para fazer referência ao “assumir-se” como gay, lésbica, bissexual, transgénero. etc.

O sair do armário é um processo muitas vezes envolto em muitas dúvida e medos, devido ao facto de existir ainda estigma social numa sociedade que é cisheteronormativa, por muito que alguns avanços vão acontecendo.

Neste artigo pretendemos falar sobre o processo de sair do armário e apresentar algumas estratégias que podem ser importantes para que este processo seja mais pacífico.

Origem e significado da expressão “sair do armário”

A expressão “sair do armário” é a tradução da expressão inglesa “come out of the closet”. Por sua vez, esta expressão surgiu de outras duas expressões inglesas: “come out”, que designa sair ou revelar-se.

Era usada quando as debutantes se apresentavam à sociedade nas festas para atrair marido, sendo que estas festas eram chamadas de “coming out parties”; e “skeletons in the closet” ou esqueletos no armário, que é uma expressão que simboliza a existência de segredos ou partes que a pessoa oculta.

Juntando estas duas expressões, sair do armário passou a ser uma boa metáfora para representar o processo das pessoas LGBT+ se revelarem ao mundo, mostrando que não tinham mais segredos a esconder.

Associada à expressão sair do armário, surgem também as expressões “estar fora do armário”, que é quando alguém é assumidamente lésbica, gay, bi, trans ou membro de outra parte da comunidade LGBT+. Pelo contrário, a expressão “estar no armário” significa que a pessoa ainda não se assumiu.

Sair do armário é uma expressão que define o acoplamento entre orientação sexual e identidade, vivido interiormente por alguém que está pronto para se abrir a outras pessoas, num processo duradouro e dinâmico.  

Porque é que as pessoas “estão no armário?”

É muito importante compreender que sair do armário só é uma questão porque vivemos numa sociedade cisheternormativa. Não é uma escolha da pessoa, não é a pessoa que opta por “esconder” parte da sua identidade; é algo que acontece por causa do estigma.

Assim, o armário não é um lugar onde as pessoas LGBT+ se colocam. É um lugar onde são, constantemente, colocadas pela sociedade e pela cisheternormatividade.

Deste modo, as pessoas LGBT+ são colocadas num armário pela sociedade e é por viverem numa sociedade onde existe estigma que têm de ir fazendo “saídas” do armário. É algo que as ultrapassa e o ónus da culpa não pode ser colocado sobre as pessoas LGBT+.

Para percebermos melhor isto, imaginemos uma pessoa heterossexual que, durante o dia, tentasse não fazer nenhum comentário, não dizer nada, não responder a qualquer pergunta, não demonstrar nada que, direta ou indiretamente, por ação ou omissão, revelasse a sua orientação sexual. Isto implica, por exemplo, não falar sobre o namorado ou namorada, os filhos, os planos para as férias, a pessoa com quem vive em casa, as ex-namoradas e ex-namorados, etc. Parece difícil? É isso que representa para muitas pessoas LGBT+ o armário.

Porquê sair do armário?

Embora pareça lógico que é benéfico para a pessoa sair do armário, alguns estudos científicos têm procurado comprovar esses benefícios. De forma não surpreendente, os estudos têm revelado que sim, sair do armário é importante e tem um impacto positivo na vida das pessoas LGBT+.

A razão é fácil de perceber: vivermos de forma livre a nossa identidade ou parte dela é importante para o nosso bem-estar e felicidade. Esconder partes de nós, por outro lado, pode gerar vergonha, ansiedade e baixa autoestima.

Muitas vezes, até sair do armário a pessoa vive em ansiedade e tensão, pensando muitas vezes nisso, antecipando e imaginando as possíveis reações da família ou das outras pessoas. Vive, assim, hipervigilante e receosa, com uma preocupação que nunca abandona completamente a sua mente.

Sair do armário permite à pessoa viver de forma natural uma parte importante da sua vida e da sua identidade, bem como ter interações e relações afetivas, sexuais ou amorosas de forma livre e sem necessidade de isolamento.

De facto, muitas pessoas reportam como resultado de sair do armário emoções de alívio (“tirar um peso de cima”), liberdade, orgulho.

Além disso, sair do armário permite às pessoas encontrar outras pessoas da comunidade e ter uma boa rede de suporte social. Mesmo com as pessoas que já estavam presentes na sua vida anteriormente, como familiares e amigos, sair do armário e revelar uma parte de si mesmo/a importante, pode também melhorar e tornar essas relações mais próximas e sólidas.

E quando as pessoas não saem do armário?

Apesar de, como vimos, sair do armário ser benéfico e importante, não significa que todas as pessoas o façam ou que tenham de o fazer. Sair do armário é um ato pessoal, pelo que ninguém deve ser obrigado a fazê-lo. A orientação sexual ou identidade de género não são uma opção, mas sair do armário é.

Além disso, ao contrário do que se possa pensar, sair do armário não é um processo linear que promete felicidade assim que acontecer. Na realidade, em grande parte das situações é um processo sinuoso, com avanços e recuos e com custos e benefícios.

Em suma, o processo de sair do armário é altamente individual e pessoal, e depende da realidade, das circunstâncias e das vivências de cada pessoa. Como tal, não deve ser algo imposto, nem devemos achar que a pessoa é menos válida ou menos feliz se não sair do armário.

Há várias razões para alguém não sair do armário em dado momento:

  • Não ter segurança para o fazer, por exemplo no caso de jovens que temem poder ser expulsos de casa ou sofrer algum tipo de agressão se o fizerem;
  • Não ter o apoio e o suporte social necessário para o fazer e/ou ter expectativas de rejeição;
  • Ainda estar a explorar e questionar a sua identidade de género ou orientação sexual e não querer, por isso, falar sobre isso ainda abertamente;
  • Sentir não estar emocionalmente preparado para o fazer;
  • Não estarem reunidas condições imprescindíveis para isso acontecer, seja a nível pessoal, social, familiar, financeiro, de segurança, etc;
  • Não o querer fazer, seja qual for a razão, e isso também é legítimo.

Como tal, não se deve impor ou tentar forçar as pessoas a sair do armário, de forma nenhuma. Quando muito, pode-se tentar compreender a realidade da pessoa, as suas necessidades e proporcionar apoio. Há casos em que a pessoa quer sair do armário, mas não sabe como o fazer, e é importante acolher essa experiência e ajudar na medida certa, sem impor. Devemos recordar que é a pessoa que vai viver com o impacto de sair do armário, não nós.

Assim, sair do armário é sobretudo uma escolha e um processo que deve ser respeitado no seu timing, forma, dinamismo e singularidade.

Devo sair do armário?

Tendo em conta as considerações que tecemos sobre sair ou não do armário, e a compreensão de que essa é uma escolha individual e pessoal, pode questionar-se: devo então sair do armário?

Para facilitar, a presença das seguintes características e aspetos podem ser bons indicadores para ponderar sair do armário:

  • Sentir que isso vai ser libertador e importante;
  • Não estar satisfeito/a com a ocultação da sua orientação sexual ou identidade de género;
  • Não querer continuar a justificar aspetos da sua vida e privacidade;
  • Sentir que está capaz de gerir perdas e mudanças que possam decorrer de sair do armário;
  • Ter recursos internos e externos necessários para lidar com os desafios possíveis de sair do armário;
  • Estar pronto/a para investir em relações de qualidade e positivas, o que pode significar perder algumas outras relações;
  • Ter condições de segurança para sair do armário.

Sair do armário acontece de uma vez só?

Por vezes a expressão sair do armário pode-nos dar a ideia de que há um grande momento, em que a pessoa de repente se assume perante todas as outras pessoas. No entanto, não é desta forma que geralmente as coisas acontecem.

Sair do armário é um processo que pode incluir várias saídas do armário. Geralmente, as pessoas não fazem um grande anúncio, vão contando e vão tendo conversas com diferentes pessoas em diferentes momentos. Sair do armário é um processo, com avanços e recuos, altos e baixos, que se pode prolongar no tempo e ocorrer de forma dinâmica. E é algo que pode ser gradual, com medos presentes, em que se vai criando uma abertura progressiva, por vezes de forma lenta.

Pode haver o contar à família, o contar a certos amigos, o assumir-se no trabalho ou noutros contextos de vida.

O sair do armário deve ser sempre voluntário e nunca forçado por outras pessoas. É errado e prejudicial revelar ou falar da orientação sexual ou identidade de género de alguém a outras pessoas se não se tiver a certeza de que a pessoa está bem com isso.

Que reações esperar quando se sai do armário?

Quando a pessoa sai do armário, as reações das outras pessoas podem ser muito variáveis e podem incluir:

  • Já estar à espera e de alguma forma já saber, algo que acontece em várias famílias, em que os pais já desconfiavam e esperaram o momento em que os filhos quisessem contar;
  • Acolher e aceitar, sem grande questionamento ou surpresa;
  • Ficar surpreso/a, mas ainda assim aceitar e acolher;
  • Ficar surpreso/a e ter dificuldade em reagir no momento, precisar de tempo para digerir;
  • Fazer perguntas, sendo algumas das mais comuns: “Tens a certeza?”, “É só uma fase?”, “Como é que sabes / soubeste?”, “Porque não me contaste antes?”;
  • Reagir de forma adversa, que pode ir desde negar o que está a ser dito, até formas mais violentas como o insulto.

É importante perceber que é normal a família sentir receio e ter dúvidas. Cada pessoa poderá reagir de forma distinta e passar por processos diferentes, e é comum que este processo leve tempo.

Estratégias e o que evitar ao sair do armário

Como podemos ver até agora, sair do armário é um processo altamente individual, único e subjetivo. Além disso, deve ser sempre voluntário e uma escolha da pessoa, nunca impingido ou forçado.

Considerando tudo isto, é natural que sair do armário seja difícil e que crie na pessoa dúvidas e medos. Como tal, algumas estratégias podem ajudar a uma saída do armário mais leve e positiva:

  • Trabalhar primeiro a autoaceitação, explorando sentimentos, receios, pensamentos… Se a pessoa estiver mais resolvida a esse nível, isso poderá facilitar a comunicação com as outras pessoas;
  • Perceber que é normal sentir medo, que por muito que a pessoa tenha refletido e se sinta preparada, ainda assim é normal existir medo e apreensão;
  • Garantir que é seguro sair do armário, que a segurança está garantida;
  • Fazê-lo de uma forma gradual, começando por contar a uma pessoa em que realmente se confia e que transmite conforto e segurança e a qual se sabe que não vai contar a outras pessoas;
  • Explorar primeiramente o tema sem ainda revelar diretamente a questão, ou seja, “apalpar terreno”, introduzir o tema da orientação sexual ou identidade de género para perceber melhor o que pensam as pessoas sobre isso e quais as suas reações. Aproveitar, por exemplo notícias que passam na televisão sobre a temática para explorar o tema;
  • Gerir expectativas antes de sair do armário, ou seja, ter em conta que a reação pode não ser aquela que se está à espera, seja pela positiva ou pela negativa. Ter tempo e espaço para pensar sobre o que se espera e gerir essas expectativas;
  • Conversar com outras pessoas LGBT+ para conhecer as suas próprias experiências e como é que viveram a sua saída do armário;
  • Conversar sobre o assunto num momento e lugar oportuno e que faça sentido e traga conforto e segurança. Isto não quer dizer que tenha de haver um excessivo planeamento, pois dependerá de pessoa para pessoa. Se para algumas pessoas pode até fazer sentido ocorrer de forma mais espontânea, para outras será importante algum planeamento. Independentemente disso, tentar garantir que há alguma segurança e que existe tempo para falar sobre o assunto pode ser importante. Isto inclui não falar sobre o assunto num momento de discussão, conflito ou frustração, ou ainda sob o efeito de álcool ou qualquer outra substância;
  • Organizar as ideias e preparar de alguma forma o discurso, sobretudo se a pessoa sentir que é muito difícil saber o que dizer ou como dizer. Pode até ser útil escrever primeiro as ideias num papel, para organizar o discurso e a mensagem que quer transmitir, o que pode dar uma maior segurança;
  • Compreender que as pessoas podem precisar de tempo para processar a informação. Devemos relembrar que todas as pessoas acabam por ter sido criadas sob uma norma cishetero, o que faz com que possam precisar de digerir, não porque rejeitem ou não gostem da pessoa, mas porque têm de lidar com o seu próprio questionamento interno;
  • Ao falar sobre o assunto, dar espaço à outra pessoa ou às outras pessoas para colocarem perguntas e mostrar disponibilidade para ouvir e responder a essas perguntas, afinal, é natural que elas possam existir;
  • Definir um plano de ação, ponderar diferentes cenários e alternativas e ter um plano para cada uma delas. Se, por exemplo, na exploração inicial e no “apalpar terreno” a pessoa percebe que a família é algo homofóbica e que pode haver reações adversas, convém ter um plano para o caso de a família reagir mal. Por exemplo, ter a quem recorrer, ter um sítio para ficar, ter com quem falar caso isso aconteça e a pessoa fique emocionalmente transtornada… No fundo, ter diferentes alternativas pensadas e garantir que existe apoio caso seja necessário.

Dentro deste plano de ação e das medidas de segurança a acautelar, é importante contar com algumas associações e linhas de apoio que podem ajudar:

  • Linha de Apoio LGBTI+ da ILGA, para a qual pode ligar de forma anónima e confidencial, sextas e sábados das 20h às 23h: 218 873 922; 969 239 229;
  • Grupos de apoio e partilha, e centro comunitário da ILGA;
  • Gabinete de apoio à vítima da casa qui: 96 008 11 11;
  • Linha de emergência social: 144.

Como reagir quando alguém sai do armário?

A postura de quem está do outro lado, ou seja, de quem ouve a pessoa que está a assumir a sua orientação sexual ou identidade de género, é fundamental e pode fazer toda a diferença.

Assim, é importante adotar uma postura de aceitação e acolhimento. Da mesma forma, há algumas coisas que é muito importante saber relativamente à pessoa LGBT+:

  • Ela é a mesma pessoa, a sua orientação sexual ou identidade de género é apenas parte de si e da sua identidade;
  • A única coisa que a pessoa quer e procura é apoio e suporte;
  • A pessoa não escolheu a sua orientação sexual ou identidade de género, é algo que faz parte de si;
  • O apoio das pessoas que estão na sua vida, ou a falta dele, têm um grande impacto;
  • Quando a pessoa fala sobre a sua orientação sexual ou identidade de género, não o faz de forma impulsiva nem é “uma fase”; é algo que no qual a pessoa provavelmente já pensou muito antes de decidir falar com outras pessoas;
  • Se a pessoa está a contar-nos, é porque confia e precisa de nós.

Depois de ter em conta estas questões, é importante que adote algumas estratégias para ajudar a pessoa a sair do armário e a fazê-lo de uma forma saudável e mais positiva:

  • Questione e reveja as suas próprias perceções sobre a orientação sexual ou identidade de género, os seus preconceitos e estereótipos;
  • Seja empático, ou seja, procure colocar-se no lugar da pessoa, perceber o quão exigente e difícil este momento pode ser para ela;
  • Lembre-se que a pessoa à sua frente está a partilhar algo consigo que é tão importante e que provavelmente lhe trouxe tantas dores e medos, que merece que tente enfrentar a situação tendo isso em conta e libertando-se do sistema moral ou cognitivo que leva a julgamentos decerto ou errado ou a olhar para as coisas apenas de um ponto de vista;
  • Adote a escuta ativa, procure ouvir primeiro e estar disponível a realmente ouvir o que a pessoa tem para dizer;
  • Não torne a questão sobre si, dizendo coisas como, “mas e agora como vai ser?”, “porque não me contaste antes?”, “como é que eu agora vou contar a.…?”. Recorde-se que este é provavelmente um momento fulcral e exigente para a pessoa, e não é sobre si;
  • Encare o momento e o facto de a pessoa estar a partilhar essa parte de si consigo como um ato de confiança e amor, e procure devolver esse amor, na medida que conseguir;
  • Antes de julgar, pergunte. Se tem dúvidas, questões ou receios, em vez de julgar ou assumir que tem as respostas, pergunte e dê abertura para que a outra pessoa possa responder;
  • Compreenda e acolha, entendendo que a pessoa está a mostrar-lhe coragem e amor, e que isso é motivo de orgulho e confiança;
  • Tem direito a precisar de processar a informação, mas lembre-se que pode tentar fazê-lo sem julgar ou ferir. Faça as perguntas necessárias com genuíno interesse em vez de julgamento ou rejeição. Se precisar de apoio e de informação para perceber melhor, procure-o. A pessoa já fez o processo difícil de colocar todas essas questões a si mesma; agora é a sua vez!

Diana Pereira

Amante de histórias, gosta de as ouvir e de as contar. Tornou-se Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde, pela Universidade do Porto, mas trouxe sempre consigo a escrita no percurso. Preocupada com histórias com finais menos felizes, tirou pós-graduação em Intervenção em Crise, Emergência e Catástrofe. Tornou-se também Formadora certificada, e trabalha como Psicóloga Clínica, com o objetivo de ajudar a construir histórias felizes, promovendo a saúde mental. Alimenta-se de projetos, objetivos e metas. No fundo, sonhos com um plano.