Ser sobredotado: mitos, características e problemas

crianca sobredotada

Ouvimos muitas vezes a palavra “sobredotado” em referência a alguém com capacidades elevadas, e frequentemente o termo é usado de forma errada. Compreendemos que a sobredotação está relacionada com capacidades elevadas em algum domínio, mas essa compreensão não ultrapassa isso. Muito mais há a saber sobre quem é sobredotado e sobre a sobredotação. Neste artigo pretendemos explicar em maior detalhe o que é ser sobredotado, quais as implicações, qual a origem da sobredotação e as medidas a adotar.

O que significa ser sobredotado?

A sobredotação é um fenómeno complexo. O seu conceito e definição foram evoluindo ao longo do tempo, sendo que inicialmente a sua definição estava apenas relacionada com níveis de capacidades cognitivas superiores, tendo passado à contemplação de fatores motivacionais, socioemocionais, e aptidões diversas.

De uma forma geral podemos considerar a sobredotação como uma herança genética, ou seja, algo que é inato na criança. Por outro lado, os talentos são produto de uma interação entre as predisposições naturais e o ambiente ou contexto, por exemplo a família e a escola.

Assim, ser sobredotado implica o uso de capacidades naturais expressas de forma espontânea em pelo menos um domínio da atividade humana. Alguém sobredotado possui naturalmente capacidades excecionais em determinado domínio. O talento implica a sobredotação, mas o contrário nem sempre se verifica. Ou seja, uma pessoa sobredotada pode não desenvolver a mestria por falta do treino ou da prática. O desenvolvimento do talento e da mestria é facilitado por fatores intrapessoais (fatores físicos e psicológicos, com especial destaque para a motivação) e ambientais ou contextuais (por exemplo influência da sociedade em que o indivíduo se encontra, da escola, da família, etc).

Ao nível dos diferentes domínios, aptidões ou capacidades naturais, podemos considerar os domínios intelectual, socioafetivo, sensório-motor e criativo.

A sobredotação pode também ser vista como resultado da interação de três componentes: capacidade acima da médica, criatividade e envolvimento na tarefa. As capacidades podem ser gerais, por exemplo raciocínio numérico, memória, fluência verbal, ou podem ser mais específicas, por exemplo em matemática, música, dança… Podem manifestar-se pela combinação de várias capacidades superiores gerais a uma ou mais áreas específicas de conhecimento ou realização humana. O envolvimento na tarefa significa a capacidade para ter altos níveis de interesse, entusiasmo, fascínio, determinação, resistência, perseverança, determinação e esforço. A criatividade, por sua vez, diz respeito à capacidade para pensar e resolver problemas de forma original e distinta, o que requer um pensamento produtivo e independente, em vez de uma atitude conformista e repetitiva.

Para alguém ser sobredotado não basta a capacidade acima da média, a criatividade e o envolvimento na tarefa: é necessária uma interação entre estes vários fatores, e todos devem estar presentes.

Em suma, a elevada capacidade inata de um indivíduo nem sempre se expressa num elevado rendimento ou desempenho. Para isso é necessário que estejam presentes outros fatores como a motivação, a criatividade e fatores facilitadores no meio ou contexto em que a pessoa se insere. Por exemplo, uma criança com elevada capacidade cognitiva, mas que depois seja pouco estimulada pela escola ou pela família provavelmente não vai apresentar elevados níveis de desempenho.

O sobredotado é assim aquele que apresenta uma capacidade significativamente superior à da população em geral em diferentes áreas de desempenho, não apenas a nível de QI, como muitas vezes se pensa.

Mitos associados ao ser sobredotado

Diversos mitos acabam por persistir em redor da questão da sobredotação e sobre indivíduos sobredotados. Para compreender este fenómeno é importante desconstruir alguns destes mitos:

  • O sobredotado tem sempre um desempenho ou rendimento acima da média – muitas vezes alguém sobredotado pode apresentar um rendimento que fica aquém do seu potencial, apresentando uma discrepância entre aquilo que é capaz de fazer e o seu desempenho, ou seja, aquilo que efetivamente demonstra e consegue realizar. Ou seja, o sobredotado nem sempre será o aluno com as notas mais elevadas. Isto pode acontecer devido à desmotivação do aluno face à escola, ao ritmo lento das aprendizagens da restante turma, à excessiva repetição do conteúdo ou baixas expectativas dos pais ou professores;
  • O sobredotado é muito bom a matemática e outras áreas científicas – as capacidades elevadas não se limitam aos domínios intelectuais e académicos, sendo importante ter em conta as áreas artística, social e emocional. As experiências de aprendizagem devem ser enriquecedoras e devem estimular capacidades diversas e favorecer o ajustamento socioemocional de forma a contribuir para a realização plena do potencial do aluno;
  • O sobredotado tem um QI muito acima da média – nem sempre os resultados obtidos nos testes de QI são indicadores absolutos da sobredotação, porque estes testes estão mais ligados às áreas lógico-matemática, linguística e espacial, sendo que, como vimos, o sobredotado pode ter uma capacidade superior noutras áreas como por exemplo as áreas artísticas;
  • O sobredotado já nasce assim – parte deste pressuposto é verdade, uma vez que há de facto uma componente genética que explica a sobredotação. No entanto, os fatores contextuais e o estímulo que a criança recebe são também fundamentais para explicar a capacidade excecional. Uma capacidade inata e genética não é suficiente para se manifestar a sobredotação, e sem oportunidades para desenvolver as suas capacidades a criança não as vai manifestar;
  • O sobredotado é bom em tudo – muitas vezes as crianças sobredotadas, por marcarem pela diferença, acabam por não se integrar tão bem socialmente;
  • O sobredotado em adulto será alguém muito bemsucedido – isto não é necessariamente verdade uma vez que, como vimos, para que as capacidades inatas se mantenham e desenvolvam é necessário que a pessoa, tal como qualquer outra, persista e apresente motivação para perseguir determinados objetivos. Uma criança com uma capacidade elevada num meio desfavorecido ou que tem poucas oportunidades para desenvolver o seu potencial dificilmente atingirá níveis elevados de realização ou sucesso apenas por ter capacidades elevadas;
  • O sobredotado é bom em tudo – uma criança pode ser sobredotada numa determinada área e noutras áreas ser mediana ou até mesmo ter dificuldades;
  • Ser sobredotado é algo sempre bom – a sobredotação pode levar a problemas como a depressão ou isolamento social, se as necessidades específicas da criança não forem devidamente atendidas pela família e pela escola.

Pode-se ser sobredotado em que áreas?

Como vimos, a sobredotação não se restringe ao domínio mais intelectual ou académico (ter uma excelente memória, capacidade de raciocínio ou apreensão rápida de matérias escolares e conteúdos), podendo estar presente em diversas áreas ou domínios, tais como:

  • Sobredotação artística – áreas de expressão como a música, teatro, pintura, literatura, escultura, entre outras.
  • Sobredotação social – capacidades de comunicação e relacionamento com os outros, compreensão das emoções próprias e alheias e capacidade de liderança;
  • Sobredotação motora – capacidade de coordenação e expressão motora, nomeadamente em atividades físicas e desportivas;
  • Sobredotação mecânica – capacidade de compreender e resolver problemas técnico-práticos, manuseando esquemas e equipamentos de natureza mecânica, eletrónica ou computacional.

Quais as características do sobredotado?

É possível identificar algumas das principais características de um aluno sobredotado. O aluno sobredotado pode revelar algumas das seguintes características:

  • Capacidade superior ou acima da média, revelando interesses e aptidões específicas, boa capacidade de compreender e memorizar informação numa ou mais áreas de desempenho ou realização;
  • Capacidades criativas e produtivas acima da média, relevando uma grande capacidade de experimentar e aplicar os conhecimentos adquiridos, mostrando também uma diversidade de soluções e ideias para os problemas;
  • Capacidade de liderança, responsabilidade e persuasão;
  • Criatividade, capacidade de interligar ideias e formas de expressão;
  • Capacidades psicomotoras elevadas, conseguindo aprender e aplicar facilmente as competências físicas e manuais;
  • Nível elevado de persistência e motivação nas tarefas, conseguindo resolver os problemas de uma forma autónoma.

Geralmente o aluno sobredotado apresenta capacidades elevadas a nível da aprendizagem, sendo capaz de dominar rapidamente a informação aprendida, compreender com facilidade, generalizar os conhecimentos aprendidos e aplicá-los de forma eficiente. O sobredotado também tem um elevado nível de motivação, tendo iniciativa para iniciar atividades, persistindo na sua realização e finalização e procurando atingir resultados excelentes. Geralmente tende a desmotivar quando as tarefas são repetitivas ou rotineiras.

A sobredotação também se caracteriza por uma boa capacidade criativa, sendo que o sobredotado tenderá a apresentar uma curiosidade elevada pelas coisas, conseguindo resolver os problemas de forma original. Por outro lado, tem pouco interesse para situações repetitivas e pelo conformismo.

O sobredotado tem problemas a nível social?

Há por vezes a ideia de que o sobredotado apresentará problemas de integração social e será aquela criança solitária ou rejeitada pelos pares, o que nem sempre se verifica. Esta dificuldade a nível socio emocional tende a acontecer mais em alunos sobredotados que apresentam um baixo rendimento académico ou que apresentam níveis elevados de habilidade intelectual.

Efetivamente a criança sobredotada pode ser entendida como estando um “grupo de risco”, não devido ao facto de ter capacidades superiores, mas sim porque, em consequência disso, precisa de uma atenção especial por parte do contexto escolar e familiar para que possa ajustar-se e desenvolver as suas capacidades de forma adequada. Tal como um aluno que tem dificuldades de aprendizagem, o aluno sobredotado também tem necessidades específicas no que diz respeito à sua aprendizagem. Por exemplo, é mais provável que estes alunos desmotivem facilmente se os conteúdos não forem suficientemente desafiantes e ajustados à sua capacidade. Como tal, quando a resposta às necessidades destes alunos não é adequada, haverá um maior risco de marginalização dos mesmos.

O facto de o aluno sobredotado aprender num ritmo diferente dos seus pares também poderá ser um fator que contribua para o afastamento do grupo de pares. É importante, por isso, que os adultos e os contextos em que a criança se encontra sejam capazes de gerir as expectativas face à criança e encontrar uma forma de que esta se possa ajustar da melhor forma possível a esses contextos.

Algumas vezes o aluno sobredotado pode também apresentar problemas de autoestima, sobretudo a nível físico e social. Tal como uma criança que tem dificuldades de aprendizagem, o aluno sobredotado também precisa de apoio por parte dos adultos em aceitar-se a si mesmo como é, e a valorizar as suas características pessoais. Muitas vezes estes alunos podem ter tendência a tentar esconder de alguma forma as suas capacidades superiores como forma de se integrarem mais facilmente. Inclusivamente podem apresentar um rendimento académico inferior para conseguirem atingir maior popularidade.

Como ajudar uma criança sobredotada?

Como vimos, a sobredotação implica necessidades específicas que devem ser atendidas. Por isso, é fundamental que os contextos em que a criança se insere e que os adultos que a rodeiam sejam responsivos e adotem algumas estratégias que contribuam para a sua melhor integração e bem-estar global. Apresentaremos algumas estratégias fundamentais a serem adotadas pela escola e pela família.

Ajudar o sobredotado na escola

Em primeiro lugar é fundamental que os professores e agentes educativos estejam atentos à criança e sejam capazes de detetar sinais que possam indicar a sobredotação, para sinalizar a criança para uma avaliação psicológica e cognitiva que possa delinear o seu perfil. A partir desta avaliação podem então ser adotadas medidas adequadas, tais como:

  • Analisar, organizar e desenvolver atividades que atendam às características do aluno;
  • Proporcionar um ambiente saudável em que as capacidades e conhecimentos do aluno sejam aceites e validadas;
  • Criar um perfil completo do aluno com identificação das suas áreas mais desenvolvidas, das suas características e motivações;
  • Promover oportunidades de contacto com outras crianças, nomeadamente mais velhas;
  • Abordar conteúdos com maior profundidade ou abordar conteúdos diferentes;
  • Diversificar as tarefas em ambiente de sala-de-aula;
  • Criar desafios e aumentar a dificuldade de algumas tarefas para promover e manter a motivação;
  • Permitir que o aluno sobredotado desenvolva ao máximo as suas capacidades e talentos;
  • Favorecer o desenvolvimento global do aluno sobredotado, sem restringir apenas às áreas intelectuais ou às áreas em que o aluno revela capacidades superiores;
  • Promover no aluno um autoconceito positivo;
  • Expor o aluno a diferentes áreas de conhecimento e temáticas;
  • Fomentar a criatividade;
  • Ajudar o aluno a desenvolver hábitos de estudo, aprendizagem e trabalho;
  • Proporcionar oportunidades para refletir sobre o seu futuro e interesses profissionais;
  • Promover as capacidades socio emocionais e a capacidade de trabalhar em grupo;
  • Se necessário adequar o nível, o ritmo e a complexidade do currículo à prontidão académica e à motivação do aluno. Isto pode concretizar-se através de medidas de aceleração académica que podem consistir em:
    • Entrada antecipada na escola;
    • Avanço de ano escolar;
    • Avanço por disciplinas;
    • Currículo abreviado;
    • Estudo independente;
    • Turmas combinadas;
    • Programas extracurriculares;
    • Entrada antecipada e aceleração no ensino superior.

Ajudar o sobredotado no seio da família

  • Proporcionar à criança um ambiente desafiador e estimular, para que esta seja capaz de identificar e ainda de desenvolver as suas capacidades;
  • Procurar informação e responder a questões da criança que os pais possam desconhecer;
  • Procurar conversar com a criança sobre assuntos do seu interesse;
  • Maximizar e encorajar os seus pontos fortes e estimular os pontos mais fracos ou menos desenvolvidos;
  • Favorecer a pró-atividade e a iniciativa, evitando o excesso de atividades estruturadas e repetitivas;
  • Gerir as expectativas e evitar expectativas demasiado elevadas para o desempenho da criança, tendo em conta que, apesar de esta ter capacidades acima da média, também pode ter dificuldades noutras áreas e também pode falhar;
  • Permitir tempo à criança para passatempos e hobbies;
  • Não ocupar em excesso o tempo da criança com atividades;
  • Ajudar a criança a criar uma imagem positiva de si própria e a lidar com situações de fracasso;
  • Promover a socialização e a interação com outras crianças e criar oportunidades ricas de socialização;
  • Não esperar que a criança seja mais madura ou tratá-la como um adulto, agir com a criança de forma adequada à sua idade e fase do desenvolvimento;
  • Colaborar ativamente com a escola.

Pode ser necessário e importante que a criança sobredotada beneficie de intervenção por parte do psicólogo escolar ou de um psicólogo externo. O psicólogo pode trabalhar com a família e a escola ajudando-os a promover a integração e o bem-estar da criança, e pode ainda trabalhar com a criança no sentido de promover as suas competências socioemocionais, a desenvolver tolerância à frustração e a orientá-la a nível vocacional e profissional.

Diana Pereira

Amante de histórias, gosta de as ouvir e de as contar. Tornou-se Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde, pela Universidade do Porto, mas trouxe sempre consigo a escrita no percurso. Preocupada com histórias com finais menos felizes, tirou pós-graduação em Intervenção em Crise, Emergência e Catástrofe. Tornou-se também Formadora certificada, e trabalha como Psicóloga Clínica, com o objetivo de ajudar a construir histórias felizes, promovendo a saúde mental. Alimenta-se de projetos, objetivos e metas. No fundo, sonhos com um plano.