Disforia de género: o que é, sinais e tratamento

Disforia de género

A disforia de género é uma perturbação a nível emocional que está associada à incongruência entre o género atribuído à nascença (sexo designado – masculino / feminino) e o género experimentado / sentido. Muitas vezes, acaba por ser mal-entendida e pouco compreendida, quer pelas pessoas de forma geral, quer ainda pelos profissionais de saúde.

Deste modo, neste artigo pretendemos explicar de forma clara e objetiva o que é a disforia de género, quais os sinais e sintomas e quais as formas de intervenção.

Compreender o que é a identidade de género

Para conseguirmos compreender devidamente o que é a disforia de género, temos de recuar e perceber primeiro o conceito de identidade de género.

De uma forma simplista, a identidade de género diz respeito ao género com o qual a pessoa se identifica, que sente e vivencia como sendo o seu, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído à nascença. De forma mais abrangente, a identidade de género refere-se à vivência interna e individual de cada pessoa face ao seu corpo, expressão de género, comportamentos ou outras manifestações individuais e sociais. A identidade de género é habitualmente acompanhada pela vontade de viver e ser aceite como membro desse género.

Assim, a identidade de género não tem necessariamente uma correspondência com o sexo biológico designado à nascença. Significa isto que as pessoas podem ou não ter um género que corresponde ao sexo que lhes foi atribuído à nascença (masculino/feminino).

As pessoas cisgénero são aquelas cuja identidade de género corresponde ao esperado socialmente pelo sexo atribuído à nascença (por exemplo, a pessoa identifica-se e sente-se como mulher e quando nasceu foi-lhe atribuído o sexo feminino).

Por outro lado, as pessoas transgénero questionam ou não se identificam total ou parcialmente com o sexo que lhes foi atribuído à nascença (por exemplo, a pessoa nasceu e foi-lhe atribuído o sexo masculino, de acordo com algumas características sexuais primárias ou secundárias, mas a pessoa não se identifica com esse género).

Distinguir entre ser trans e apresentar disforia de género

As pessoas trans podem ou não apresentar disforia de género e, como tal, é muito importante distinguir uma coisa da outra. Esta importância assenta sobretudo no facto de que a identidade trans não é um problema em si mesma nem constitui qualquer tipo de diagnóstico. É, apenas, uma forma de identidade válida como qualquer outra.

A disforia de género é um problema psicológico ou emocional que surge quando há sofrimento associado ao facto de a identidade de género não corresponder com o sexo atribuído à nascença. Assim, a disforia não existe apenas por existir esta incongruência, mas sim por ela causar sofrimento. Ou seja, não é por a pessoa ser transgénero que tem disforia de género. Se a pessoa, sendo trans, não se encontra em sofrimento psicológico ou emocional, não se aplica o diagnóstico de disforia de género.

Ao longo dos anos, as situações de identidade de género não congruentes com o género atribuído à nascença foram classificadas no âmbito das doenças mentais e tratadas como patológicas. No entanto, atualmente considera-se que, tal como aconteceu a nível da orientação sexual (em que as pessoas homossexuais eram consideradas como tendo uma patologia), também as diferentes identidades de género não traduzem em si mesmo uma doença.

O que define a disforia é o sofrimento subjacente, não a identidade. Para percebermos melhor esta distinção, vamos analisar os critérios diagnósticos da disforia de género.

O que é então a disforia de género?

De acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), o diagnóstico de Disforia de Género (que veio substituir o anterior de Perturbação de Identidade de Género) é feito quando as pessoas vivenciam um sofrimento e um desconforto psicológico e físico persistentes, resultantes da não coadunação entre o sexo atribuído à nascença e (a identidade de) o género.

Podemos definir a disforia de género, de forma genérica, como o descontentamento afetivo / cognitivo de uma pessoa com o género designado. A disforia de género é o sofrimento que pode acompanhar a incongruência entre o género experimentado ou expresso e o género designado de uma pessoa.

Este diagnóstico revela a existência de um sofrimento clinicamente significativo associado à não correspondência socialmente esperada entre o sexo e (a identidade de) o género, tentando evitar o estigma associado e, concomitantemente, garantir o acesso das pessoas trans a cuidados médicos especializados e de proximidade.

Em termos dos sinais e sintomas associados à disforia de género, temos de distingui-los mediante estejamos a falar de disforia de género em crianças ou disforia de género em adultos.

Sintomas da disforia de género nas crianças

A disforia de género em crianças caracteriza-se pela incongruência acentuada entre o género experimentado / expresso e o género designado de uma criança, e manifesta-se por alguns dos seguintes aspetos:

  • Forte desejo de pertencer a outro género ou insistência de que um género é o outro (ou algum género alternativo diferente do designado). Pode acontecer por exemplo uma menina (género designado) dizer que quer ser menino, que é menino ou que vai ser um homem quando for grande;
  • Em meninos (género designado), pode haver uma preferência por cross-dressing (travestismo) ou simulação de roupas geralmente associadas ao género feminino. Por vezes, estas crianças usam materiais disponíveis para simular roupas tipicamente femininas, como usar toalhas ou aventais para fazer de saia ou vestido. Em meninas (género designado), pode haver uma preferência por vestir somente roupas tipicamente associadas ao género masculino e uma forte resistência em vestir roupas tipicamente femininas. Muitas vezes são crianças que são percebidas por estranhos como sendo de outro género. A criança pode ainda, por vezes, pedir para ser chamada por outro nome, congruente com o género experimentado. Quando os pais insistem ou tentam que a criança use roupas mais associadas ao género designado, a criança apresenta recusa e reações negativas. Por vezes também recusam participar em eventos sociais ou escolares em que é exigido o uso de roupas ou trajes associados ao género designado;
  • Há uma forte preferência por papéis transgéneros em brincadeiras de faz-de-conta ou fantasias;
  • Há uma forte preferência por brinquedos, jogos ou atividades tipicamente usados ou preferidos por outro género;
  • Há uma forte preferência por brincar com pares de outro género;
  • Em meninos (género designado), pode verificar-se a rejeição de brinquedos, jogos e atividades tipicamente masculinos e forte evitamento de brincadeiras agressivas e competitivas. Em meninas (género designado), pode haver rejeição de brinquedos, jogos e atividades tipicamente associadas ao género feminino;
  • A criança sente-se mal com a sua anatomia sexual e deseja ter características sexuais primárias e/ou secundárias compatíveis com o género experimentado. Pode acontecer, por exemplo, meninas (sexo designado) recusarem-se a urinar na posição sentada. Podem ainda expressar o desejo de ter um pénis, afirmar ter um ou dizer que irão ter um quando forem mais velhas. Podem ainda afirmar que não querem ter “maminhas” ou menstruar. Por seu turno, os meninos (género designado) podem insistir em urinar sentados, dizerem sentir repulsa pelo pénis ou testículos e expressar desejo de que estes “desaparecessem” ou fossem “tirados” ou mesmo expressar diretamente o desejo de ter uma vagina;

Estes sintomas estão associados a sofrimento clinicamente significativo e podem também estar associados a alterações no funcionamento da criança a nível pessoal, social, familiar, académico…

Sinais da disforia de género em adolescentes e adultos

A disforia de género em adultos caracteriza-se também pela incongruência acentuada entre o género experimentado / expresso e o género designado de uma pessoa, e expressa-se pelos seguintes sintomas:

  • Incongruência acentuada entre o género experimentado / expresso e as características sexuais primárias e/ou secundárias (ou, em adolescentes jovens, as características sexuais secundárias previstas);
  • Forte desejo de se livrar das próprias características sexuais primárias e/ou secundárias em razão da incongruência acentuada com o género experimentado / expresso (ou, em adolescentes jovens, desejo de impedir o desenvolvimento das características sexuais secundárias previstas). Alguns adolescentes podem depilar as pernas ao primeiro sinal de aparecimento de pelos, ou ainda prender os órgãos genitais para que estes não fiquem visíveis ou não se notem. As raparigas (género designado), podem prender ou apertar os seios para que deixem de ser visíveis, andar curvadas ou usar camisolas largas. Esta repulsa ou mal-estar com as características sexuais pode levar a que, iniciada a vida sexual, haja impedimento de mostrar ou ser tocado pelos/as parceiros/as nas zonas genitais, por exemplo. Em adultos, a atividade sexual pode ficar bastante limitada por causa disto;
  • Forte desejo pelas características sexuais primárias e/ou secundárias do outro género;
  • Forte desejo de pertencer a outro género (ou a algum género alternativo diferente do designado);
  • Forte desejo de ser tratado como o outro género (ou com algum género alternativo diferente do designado). Podem pedir às pessoas que tratem por outro nome, mais coadunante com o género experimentado;
  • Convicção da existência de sentimentos e reações típicos do outro género (ou com algum género alternativo diferente do designado).

Estes sintomas estão associados a sofrimento clinicamente significativo e a alterações a nível do funcionamento pessoal, social ou profissional da pessoa.

Importa salientar que o género experimentado pode incluir identidades de género alternativas além dos estereótipos binários (masculino / feminino). Em consequência, o sofrimento associado à disforia de género não se limita ao desejo de simplesmente pertencer ao outro género, podendo incluir também o desejo de ser de um género alternativo, desde que diferente do designado.

Como se desenvolve e evolui a disforia de género?

Tanto em adolescentes como em adultos do sexo masculino ao nascimento há duas grandes trajetórias para a disforia de género: de início precoce e de início tardio.

A disforia de género de início precoce começa na infância e continua na adolescência e na vida adulta; ou, ainda, pode haver um período intermitente em que cessa a disforia de género e as pessoas se identificam como gays ou homossexuais, ocorrendo, em seguida, a recorrência da disforia de gênero.

A disforia de género de início tardio ocorre ao redor da puberdade ou bem mais tarde na vida. Algumas pessoas afirmam ter sentido desejo de pertencer a outro género durante a infância sem tê-lo verbalizado para outras pessoas. Outros não se recordam de quaisquer sinais de disforia de género na infância. Com frequência, os pais de adolescentes com disforia de género de início tardio demonstram surpresa porque não tinham percebido sinais de disforia de gênero no período da infância. Expressões de disforia anatómica são mais comuns e proeminentes em adolescentes e adultos após o desenvolvimento das características sexuais secundárias.

Em pessoas que foi designado à nascença o sexo feminino, tanto adultos como adolescentes, o curso mais comum é a forma de início precoce de disforia de género. A forma de início tardio é muito menos comum em indivíduos do sexo feminino em comparação com os do sexo masculino ao nascimento. Assim como em indivíduos masculinos ao nascimento com disforia de género, pode ter ocorrido um período no qual houve recuo da disforia de género, e essas pessoas passaram identificar-se como lésbicas. Entretanto, com a recorrência da disforia de género, é comum procurarem ajuda médica, em geral com a intenção de fazer tratamento hormonal ou cirurgia de redesignação.

Quais as consequências da disforia de género?

Uma vez mais, gostaríamos de relembrar que a problemática em foco é o sofrimento causado pela incongruência entre o género designado e o experimentado, e não a identidade de género em si mesma. Assim, o que faz as pessoas sofrer não é o facto de serem trans, mas sim o facto de viverem numa sociedade que tem determinadas expectativas e guiões mediante o género, guiões esses aos quais as pessoas têm dificuldade em se ajustar.

Feito este reparo, é importante percebermos como de facto a disforia de género pode acarretar um intenso sofrimento e ter consequências diversas, o que nos alerta também para a importância de existirem respostas adequadas para estas pessoas.

Em crianças, o facto de não poderem vivenciar e experienciar a infância de forma livre e de acordo com o que preferem e sentem que são, pode levar a sofrimento e também ao isolamento social. Algumas crianças podem recusar-se a ir à escola, por serem gozadas ou julgadas pelos pares ou até mesmo pelos adultos.

Em adultos, a disforia de género traz muitas vezes dificuldades nos relacionamentos interpessoais e, mais ainda, nos relacionamentos românticos. Traz ainda dificuldades ao nível sexual.

A disforia de género está associada a níveis elevados de estigmatização, discriminação e vitimização, levando a um autoconceito e a uma autoestima negativos, a taxas elevadas de comorbidade com outros problemas de saúde mental, a abandono escolar e marginalização económica, incluindo desemprego, com todos os riscos associados a nível social e mental.

De salientar ainda que o acesso destas pessoas aos serviços de saúde, nomeadamente de saúde mental, pode ser impedido por barreiras estruturais, como desconforto institucional ou inexperiência dos profissionais em atender pessoas com estas características e/ou necessidades.

Qual o tratamento para a disforia de género?

Existem diversas abordagens no que diz respeito à intervenção nos casos de disforia de género. Não há uma resposta única adequada a todas as pessoas, mas sim diferentes respostas mediante as necessidades particulares de cada indivíduo.

As opções e alternativas mais comuns são as seguintes:

  • Mudanças ao nível da expressão e papel de género, com alterações por exemplo no nome social (registo / certidão de nascimento);
  • Terapia hormonal para adequar o corpo e a vivência física e externa à vivência interna do género experimentado;
  • Cirurgia para alteração de caracteres sexuais primários ou secundários (por exemplo, mastectomia – retirar as mamas – alterações faciais, cirurgia aos genitais, também chamada de cirurgia de redesignação);
  • Psicoterapia, que ajuda em questões como a exploração e aceitação da identidade de género, a gestão das expectativas e do impacto negativo que a disforia de género e o estigma podem ter na saúde mental, a minimização da transfobia internalizada, a promoção da resiliência e da autoestima, etc. A psicoterapia pode envolver apenas a pessoa, mas também pode envolver a família.

Diana Pereira

Amante de histórias, gosta de as ouvir e de as contar. Tornou-se Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde, pela Universidade do Porto, mas trouxe sempre consigo a escrita no percurso. Preocupada com histórias com finais menos felizes, tirou pós-graduação em Intervenção em Crise, Emergência e Catástrofe. Tornou-se também Formadora certificada, e trabalha como Psicóloga Clínica, com o objetivo de ajudar a construir histórias felizes, promovendo a saúde mental. Alimenta-se de projetos, objetivos e metas. No fundo, sonhos com um plano.