Automutilação: causas, sinais de alarme e intervenção

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A automutilação é um comportamento autolesivo que consiste em infligir danos no próprio corpo. Este tipo de comportamento ocorre com maior frequência na adolescência e está associado à presença de alterações ou perturbações a nível psicológico. A nível mundial, as taxas de comportamentos autolesivos em adolescentes têm aumentado e, como tal, este tem-se revelado um problema sério e de importante relevância. Dada a gravidade do comportamento é muito importante a sua compreensão para que exista uma atuação adequada.

Assim, neste artigo pretendemos explorar de forma mais completa os comportamentos autolesivos e de automutilação, expondo também formas de prevenção e intervenção.

O que é a automutilação?

A automutilação consiste em agredir, de forma intencional, o próprio corpo. Pode ter, ou não, a intenção de provocar a morte. Caso a pessoa se automutile com o objetivo de provocar a morte trata-se de um comportamento suicida e de uma tentativa de suicídio, que pode ou não ser concretizada. Por outro lado, há situações em que o comportamento de automutilação é realizado de forma repetida e sem intenção de provocar a morte.

Ainda assim, mesmo quando a automutilação não pretende causar a morte, quem pratica a automutilação tem maior propensão a tentativas de suicídio ou mesmo ao suicidio consumado. Por isso, ainda que os comportamentos de automutilação não tenham intenção de causar a morte, não devem nunca ser ignorados ou menosprezados.

Existe diferentes tipos de comportamentos de automutilação, como por exemplo cortar-se (utilizando facas, lâminas ou outros objetos afiados), esmurrar objetos, beliscar-se, queimar-se (utilizando por exemplo velas, fósforos, isqueiros ou cigarros), tentar partir ossos do próprio corpo ou arrancar cabelos. Também pode haver ingestão abusiva de substâncias com intenção de provocar danos ou lesões a si próprio, ou ingestão de substâncias não comestíveis ou objetos.

A pessoa geralmente pratica o comportamento de automutilação repetidamente de uma vez, acabando por provocar queimaduras ou cortes no mesmo local. Tendem a escolher uma área do corpo que seja facilmente acessível e possível de ser escondida pela roupa, por exemplo zonas como as coxas ou os braços. Uma vez que há agressões repetidas é comum a pessoa ficar com cicatrizes.

Porque é que a automutilição acontece?

Os motivos que levam alguém a ter comportamentos de automutilação podem ser variados mas têm sempre origem nalgum tipo de sofrimento psicológico. Podem ser uma forma de reduzir sentimentos negativos ou tensão emocional, uma tentativa de lidar com problemas relacionais, uma forma de autopunição ou castigo por falhas que a pessoa acredita que tem ou um pedido de ajuda. Todos estes motivos têm origem no sofrimento psicológico e por isso é frequente que os comportamentos de automutilação estejam associados a um conjunto de perturbações psicológicas, como por exemplo:

Assim, a generalidade das pessoas que adotam comportamentos de automutilação tendem a apresentar um problema psiquiátrico, sendo o mais comum o transtorno depressivo. Deste modo, a presença de sintomas depressivos constitui um sinal de alerta para este tipo de comportamentos.

Os comportamentos de automutilação surgem, habitualmente, em situações de elevada ansiedade, tensão e fúria, tendo um elevado efeito tranquilizante que incita a pessoa a repetir esse gesto mesmo quando, após se automutilar, sente culpa ou vergonha. No fundo os comportamentos automutilatórios constituem, para a pessoa, uma forma de lidar com o seu sofrimento psicológico.

O controlo da dor física traz um sentimento de alívio relativamente à dor psicológica, transmitindo uma sensação de controlo que a pessoa parece não conseguir obter de nenhuma outra forma. Há uma clara dificuldade em encontrar outras estratégias que permitam gerir as emoções negativas intensas que a pessoa sente e, na falta de outros recursos, a pessoa opta pelos comportamentos de automutilação.

Como muitas vezes acaba por substituir a dor psicológica pela dor física, e esta parece ser mais controlável, a pessoa posteriormente repete o comportamento para encontrar o mesmo tipo de alívio. Assim, a estratégia acaba por se reforçar a si mesma e, ao utilizar a automutilação como forma de gestão do sofrimento psicológico, a pessoa não aprende outras estratégias e repete este comportamento sempre que se sentir em sofrimento.

Os comportamentos de automutilação surgem frequente em momentos de intensidade emocional elevada, de dor e solidão, que surgem acompanhados de sintomas como medo, desespero, tristeza profunda, coração acelerado, tremores, pensamentos ruminantes e intrusivos. A pessoa pode sentir-se a perder o controlo e incapaz de suportar a dor sentida, pelo que vê nos comportamentos de automutilação e na dor física a única solução possível. O comportamento acaba por tornar-se quase como uma droga, que vicia, e cujo controlo é difícil, uma vez que não se conhece outra alternativa ou forma de alívio.

Qual a relação da automutilação com o suicídio?

Como vimos a automutilação pode não ter como intenção terminar com a vida, no entanto, se não existir uma intervenção adequada esta pode levar ao suicídio, quer por lesões repetidas quer por algum dos comportamentos de automutilação acabar por, acidentalmente, levar á morte. Ou seja, o suicídio pode ser o resultado não intencional da automutilação. Também ocorre que, uma vez que o sofrimento psicológico adjacente à automutilação não é alvo de intervenção, se vá agudizando acabando por existir intenção suicida da pessoa e eventual tentativa de suicídio.

Assim, as pessoas que adotam comportamentos de automutilação encontram-se em risco elevado de suicídio. Inicialmente, a pessoa pode ver o suicídio como algo extremo e assustador. Com o tempo e à medida que os comportamentos de automutilação se vão repetindo, acabam por funcionar como um reforço crescente e a pessoa pode sentir-se cada vez mais capaz de cometer o suicídio. A pessoa vai-se habituando à dor e ao medo, sentindo-se progressivamente mais capaz de comportamentos mais graves e do suicídio. Em suma, a automutilação pode desenvolver uma habituação à dor física e emocional essenciais para cometer o suicídio.

Porque é surge sobretudo na adolescência?

A adolescência é uma fase marcada por várias alterações a nível físico, psicológico, afetivo e social. É uma fase de questionamento e tentativa de definição da identidade, o que acarreta vários desafios, nem sempre fáceis de gerir. Dada a instabilidade derivada de tantas mudanças em simultâneo, esta é a fase em que os sentimentos sexuais, agressivos e os conflitos estão no seu máximo. Para além disso, o adolescente não possui ainda as ferramentas de gestão emocional do adulto. Como tal, o adolescente está mais propenso a enverdar por comportamentos impulsivos, agressivos e até suicidas, como forma de solucionar os problemas e o sofrimento psicológico.

A adolescência é, de facto, a fase onde existe uma maior propensão para adotar comportamentos de risco, uma vez que há uma multiplicidade de mudanças, uma procura pela independência e uma crise constante pela necessidade de definição de si próprio e de encontrar o seu próprio espaço. Tudo isto são questões com as quais o adolescente ainda não sabe lidar.

Assim, os comportamentos de risco, nomeadamente os comportamentos de automutilação, podem surgir apenas por exploração, pela influência do meio, ou então por dificuldade em encontrar uma outra forma de gerir as emoções negativas, o stress e os problemas que parecem insolucionáveis. Há uma maior prevalência dos comportamentos de automutilação em adolescentes do sexo feminino.

São encontradas com alguma frequência nos adolescentes que adotam comportamentos de automutilação sentimentos extremos de ódio e desprezo por si próprios, uma dificuldade em gerir emoções negativas intensas de forma adequada e um sentimento de desconforto pelo próprio corpo. O corpo torna-se fonte de sofrimento e ao mesmo tempo instrumento, pelo que é através dele que o adolescente tenta adquirir algum sentido de controlo, por exemplo infligindo dor física que possa, de alguma forma, amenizar a dor psicológica.

Existem alguns fatores de risco para o comportamento de automutilação na adolescência, ou seja, fatores que fazem com que os adolescentes sejam mais propensos a adotar estes comportamentos, nomeadamente:

  • Sexo feminino;
  • História de abuso sexual, físico ou emocional;
  • Negligência emocional na infância;
  • Perdas significativas;
  • Bullying;
  • Baixa autoestima;
  • Impulsividade / dificuldade no controlo dos impulsos;
  • Pensamentos negativos persistentes;
  • Isolamento social;
  • Baixo nível de suporte social;
  • Ambiente familiar disfuncional / desorganização e conflitos familiares;
  • Elevados níveis de stress e stressores na vida atual (por exemplo desemprego, dificuldades habitacionais, problemas de saúde, dívidas e conflitos);
  • Elevados níveis de autocrítica;
  • Menor nível de educação;
  • Uso de substâncias psicoativas.

É ainda importante referir que, em certos casos, a automutilação pode ser viciante, repetitiva e contagiosa. Por vezes ocorre jovens começarem a adotar comportamentos de automutilação por modelagem de observarem ou tomarem conhecimento deste comportamento em outros adolescentes próximos ou até de verem o comportameto nos meios de comunicação social e entretenimento.

Quais os sinais de alarme para a automutilação?

É comum e frequente a pessoa que pratica automutilação tentar esconder estes comportamentos e as marcas ou sinais corporais que podem ser indicativas destes comportamentos. Assim, a automutilação é geralmente escondida por quem a pratica, o que torna por vezes difícil detetar a sua presença e agir atempadamente.

Torna-se por isso muito importante estar atento a pequenos sinais que podem indicar a presença de comportamentos de automutilação:

  • Presença de nódoas negras, queimaduras, cicatrizes ou cortes;
  • Apresentar desculpas e justificações pouco plausíveis para estas marcas e lesões;
  • Usar roupa muito larga ou muito comprida, mesmo estando calor;
  • Evitar situações em que tem de mostrar o corpo, como por exemplo praia, piscina ou balneários;
  • Alterações no sono e no apetite;
  • Humor deprimido;
  • Irritabilidade ou níveis mais elevados de agressividade;
  • Isolamento (deixar de estar com os amigos ou não querer estar com a família, fechar-se no quarto ou na casa-de-banho por períodos de tempo longo, recusar-se a participar em atividades em que antes participava, etc..

Como agir perante alguém que pratica automutilação?

Ao descobrir e perceber que a pessoa se automutila, é difícil para as pessoas próximas saberem como gerir a situação e qual a melhor forma de ajudar. Isto pode ser particularmente complexo no caso dos adolescentes, uma vez que para os pais isto pode trazer emoções intensas de medo, preocupação, frustração, tristeza e desespero.

Ainda que seja difícil, é importante que os pais aceitem estas emoções e compreendam que os comportamentos de automutilação são uma estratégia usada por um adolescente que não está a ser capaz de gerir de outra forma os seus problemas, emoções ou pensamentos negativos. Como tal, não é culpa dos pais.

Mal seja detetada a presença deste tipo de comportamentos é fundamental procurar ajuda de um profissional de saúde mental. Um psicólogo pode ajudar o adolescente a encontrar formas mais apropriadas de gerir as emoções e lidar os problemas.

Os pais podem adotar algumas estratégias que serão úteis para lidar com a situação:

  • Validar as emoções do adolescente e mostrar compreensão por aquilo que ele está a sentir, assegurando-se de que se preocupa com ele e que apoia seja quais forem as suas dificuldades ou problemas;
  • Não gritar ou zangar-se de forma excessiva, podendo dessa forma aumentar ainda mais os sentimentos negativos e a frustração do adolescente;
  • Não minimizar nem desvalorizar os comportamentos de automutilação, assumindo que é “só uma chamada de atenção”. Este tipo de chamadas de atenção, mesmo que o sejam, acarretam risco e devem ser atendidas;
  • Não esperar que o adolescente consiga parar com os comportamentos de automutilação por si mesmo e sem qualquer tipo de ajuda;
  • Promover uma comunicação aberta e mostrar ao adolescente que pode comunicar e falar consigo, que está disponível para o ouvir em tudo aquilo que ele precisar;
  • Falar sobre o comportamento de automutilação e não tornar o assunto num tabu que não pode ser falado. Mostre ao adolescente que não o está a julgar e que não deixa de gostar dele. Dê informação concreta e factual sobre os comportamentos de automutilação, desconstruindo possíveis mitos que o adolescente possa ter, e criando uma oportunidade para ele compreender o porquê de estes comportamentos acontecerem com vários adolescentes e de serem perigosos e prejudiciais. No início é normal que o adolescente resista e não queira falar sobre o assunto ou até que fique zangado e envergonhado. Dê tempo e procure manter-se calmo e ter paciência, não desistindo e encontrando oportunidades para comunicar com o adolescente;
  • Explicar e demonstrar a importância de procurar ajuda psicológica e de que forma a intervenção psicológica pode ajudar;
  • Procurar em conjunto com o adolescente alternativas mais saudáveis para o ajudar a lidar com as suas emoções negativas. Por exemplo, respirar fundo, fazer exercício físico, fazer exercícios de relaxamento, dar um passeio, envolver-se em atividades e hobbies de que gosta, escrever o que sente num papel e rasgar o papel, colocar um cubo de gelo na mão até derreter e falar e desabafar com alguém;
  • Reduzir a acessibilidade a objetos usados para os comportamentos de automutilação (lâminas, por exemplo).

Um contexto familiar apoiante, estruturado e onde existe comunicação e afeto será protetor face aos comportamentos de automutilação, ajudando a preveni-los e sendo também importante como parte do processo de recuperação quando estes já estão presentes. Se existir também um bom suporte social, uma vida ativa com atividades de lazer e participação social, um adequado nível de saúde e uma boa inclusão nos vários contextos de vida, como por exemplo a escola, também será menor a probabilidade de ocorrência dos comportamentos de automutilação e caso estes aconteçam a intervenção será mais eficaz.

Assim, o papel da escola e dos educadores também é fundamental. Os adolescentes passam grande parte do seu tempo na escola, pelo que as pessoas que contactam com eles neste contexto podem ser as primeiras a detetar os sinais de alerta. É fundamental que o contexto escolar seja um contexto apoiante, inclusivo e responsivo, capaz de dar resposta às necessidades dos seus alunos. Sendo sinalizada uma situação de automutilação, o psicólogo escolar pode intervir junto do adolescente no sentido de compreender a situação e o encaminhar para a melhor resposta possível em termos de intervenção.

A escola também pode ter um papel importante na prevenção deste tipo de comportamentos, falando sobre eles com os adolescentes e promovendo dinâmicas e atividades que permitam discutir estas temáticas e também ensinar aos jovens formas mais saudáveis de gestão emocional.

Como é feito o diagnóstico em situações de automutilação?

Sempre que existem comportamentos de automutilação estes não devem ser ignorados e deve ser procurada ajuda profissional. É feito um diagnóstico multidisciplinar. Em primeira instância a pessoa deve ser avaliada por um médico para verificar se as lesões exigem tratamento. Posteriormente deve ser feito um diagnóstico clínico por parte de um profissional de saúde mental. Nesta avaliação deve ser determinado se o comportamento tinha a intenção de causar a morte, ou seja, se se trata de um comportamento suicida, ou não. Ou seja, são avaliados os motivos e a intenção adjacentes ao comportamento de automutilação. Esta avaliação deve ter em conta o motivo para os comportamentos de automutilação, nomeadamente se a pessoa o faz para alívio de sentimentos negativos, sendo avaliado o grau de risco.

É fundamental fazer uma análise aprofundada dos comportamentos de automutilação, averiguando, entre outros aspetos, a forma como a automutilação é praticada e se existem métodos distintos, a frequência dos comportamentos de automutilação, há quanto tempo ocorrem, em que circunstâncias acontecem e quais os gatilhos que despoletam estes comportamentos, qual é a finalidade ou objetivo dos comportamentos de automutilação e qual o grau de consciência que a pessoa tem acerca do problema e a motivação que apresenta para a mudança.

É também avaliada a restante sintomatologia presente, para além dos comportamentos de automutilação, por exemplo: alterações de humor, problemas de sono, desmotivação e pensamentos negativos. A análise da sintomatologia ajudará a determinar a existência de uma possível perturbação psicopatológica. Para esta avaliação pode também ser necessário recolher informação com familiares ou pessoas próximas da pessoa que tem os comportamentos de automutilação.

Como intervir nos comportamentos de automutilação?

Como vimos anteriormente, os comportamentos de automutilação geralmente decorrem da presença de sintomatologia psicopatológica, pelo que há um problema de base que deve ser intervencionado. Independentemente do diagnóstico presente, os comportamentos de automutilação serão sempre uma prioridade na intervenção uma vez que representam risco para a pessoa.

O tratamento irá depender do diagnóstico realizado, mas poderá passar por tratamento farmacológico (medicação) e psicoterapia. A psicoterapia pode ser individual ou em grupo e tem por objetivo trabalhar os pensamentos e emoções negativas que estão na base dos comportamentos de automutilação. Através da psicoterapia a pessoa encontrará outras estratégias, mais eficazes, de gestão emocional e de resposta ao stress, adquirindo também estratégias de autocontrolo.

Diana Pereira

Amante de histórias, gosta de as ouvir e de as contar. Tornou-se Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde, pela Universidade do Porto, mas trouxe sempre consigo a escrita no percurso. Preocupada com histórias com finais menos felizes, tirou pós-graduação em Intervenção em Crise, Emergência e Catástrofe. Tornou-se também Formadora certificada, e trabalha como Psicóloga Clínica, com o objetivo de ajudar a construir histórias felizes, promovendo a saúde mental. Alimenta-se de projetos, objetivos e metas. No fundo, sonhos com um plano.