Dissociação: o que é, causas, transtornos e tratamento

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A dissociação é um estado de desconexão com a realidade e pode ser derivada de uma patologia ou ser um estado transitório, por exemplo no decorrer de um trauma. É uma situação que pode ser assustadora para a pessoa e para aqueles que a rodeiam, devendo por isso ser devidamente atendida e encaminhada.

Neste artigo pretendemos explicar o que é a dissociação e em que situações pode estar presente, bem como qual o tratamento. Boa leitura!

O que é a dissociação?

A dissociação caracteriza-se por uma descontinuidade da integração normal da consciência, memória, identidade, emoção, perceção, representação corporal, controlo motor e comportamento.

A dissociação pode ser vivida de diferentes formas:

  • Intrusões espontâneas na consciência e no comportamento, acompanhadas por perdas de continuidade na experiência subjetiva, por exemplo fragmentação da identidade, despersonalização ou desrealização;
  • Incapacidade de aceder a informações e de controlar as funções mentais que normalmente são de fácil acesso ou controlo, por exemplo amnésia.

A dissociação é frequentemente causada por traumas e a pessoa que a vivencia fica confusa acerca daquilo que está a sentir, ou mesmo assustada, e procura ocultar os sintomas.

Assim, podemos definir a dissociação como um estado de descompensação mental, uma vez que as emoções, os pensamentos ou as sensações e memórias não são processados e integrados. Pode acontecer por exemplo a pessoa não entender se o que está a viver é real ou sentir como se estivesse num sonho. Há um distanciamento e uma desconexão da realidade.

A mente dissocia e descompensa como uma forma de defesa, geralmente em resposta a algum tipo de trauma psicológico. Ou seja, mediante a vivência de situações ou eventos traumáticos, a mente pode dissociar para impedir o contacto e confronto direto com a situação, demasiado difícil de suportar. Imaginemos por exemplo alguém que esteve envolvido num acidente grave e a memória congela essa lembrança de forma que, quando a pessoa se recorda do evento, não sente nenhum tipo de emoção. A dissociação pode alterar a memória, a consciência e até, em casos mais graves, a própria identidade.

No entanto, a dissociação também pode ocorrer como sintoma ou indício de uma psicopatologia mais profunda ou grave. Também o consumo de determinadas substâncias e drogas pode levar a um estado dissociativo, embora seja geralmente temporário.

Porque é que a dissociação acontece?

Um certo grau de dissociação, mais leve, pode acontecer com todas as pessoas. Todos experimentamos um certo desligamento da realidade quando, por exemplo, estamos focados nos nossos próprios pensamento quando estamos a conduzir e quando chegamos ao destino não nos lembramos da viagem ou de como chegamos até lá. Esta dissociação não é patológica e pode ocorrer ocasionalmente, mas acaba por não interferir significativamente no nosso bem-estar e na nossa funcionalidade diária.

No entanto, níveis mais graves de dissociação acontecem em determinados transtornos mentais. As razões geralmente residem numa conjugação de fatores contextuais ou ambientais e biológicos.

Como vimos, a vivência de situações traumáticas, como por exemplo situações de abuso sexual, podem fazer com que a dissociação seja despoletada como mecanismo de defesa, para evitar a dor emocional. Assim, o abuso físico e sexual está associado a um maior risco de desenvolver dissociação e transtornos dissociativos. Outros fatores traumáticos podem incluir testemunho de violência doméstica, pais com transtorno mental grave, morte ou suicídio inesperado de um familiar, entre outros.

Quando nascemos, não temos um sentido de identidade unificada, ela vai-se desenvolvendo a partir de diferentes experiências. Quando em criança há situações de opressão ou trauma, muitas das partes que deveriam ser integradas permanecem desconectadas, o que pode dar lugar à dissociação. Enquanto uma criança que não passa por experiências traumáticas graves consegue desenvolver uma compreensão coesa de si mesma e dos outros, as crianças que passam por esse tipo de experiências podem desenvolver mecanismos de defesa de distanciamento da realidade para evitar o confronto com a dor psicológica. Assim, a desconexão com o meio ao seu redor ou o refúgio dentro de si mesmas e da sua mente é uma forma de defesa que gera a dissociação.

Pessoas que estão sujeitas a uma persuasão coerciva intensa, como lavagem cerebral, reforma de pensamentos, cativeiro, tortura, prisão prolongada, recrutamento por seitas ou cultos ou organizações terroristas podem também apresentar questionamento da sua identidade e dissociação.

O abuso de drogas também pode estar associado aos transtornos da dissociação.

O que são os transtornos dissociativos?

Quando a dissociação permanece e está na origem de uma patologia, podemos falar de transtornos dissociativos, existindo diferentes tipos. Vamos identificar e explicar cada um destes transtornos.

Transtorno de despersonalização / desrealização

Este transtorno caracteriza-se pela sensação de irrealidade ou distanciamento da própria mente, de si mesmo ou do corpo (despersonalização) ou de uma sensação de que o que está a ocorrer não é real e um distanciamento do ambiente ao redor (desrealização). Estas alterações ao nível da experiência acontecem sem que haja prejuízo do teste da realidade. Ou seja, a pessoa está consciente e sabe o que é real ou não, no entanto tem uma sensação de irrealidade ou de desconexão, características da dissociação.

Na despersonalização, a pessoa sente-se como se fosse um observador externo dos seus próprios pensamentos, emoções, sentimentos, sensações, do seu corpo ou das suas ações. Podem ocorrer por exemplo alterações na perceção, um sentido distorcido do tempo, a sensação de irrealidade ou sentido de si mesmo irreal ou ausente, bem como anestesia emocional ou física. A pessoa pode sentir como se não conseguisse sentir nada, como se os seus pensamentos não parecessem seus ou como se a cabeça estivesse “vazia”. Também pode haver uma sensação de perda de controlo de si mesmo, dos seus movimentos e da fala, sentindo-se como se fosse um robot ou um autómato. Pode ocorrer também uma cisão do sentido de si mesmo, como se uma parte de si estivesse a agir e outra estivesse a observar, o que costuma ser definido como “experiência extracorpórea”.

Na desrealização, há uma experiência de distanciamento da realidade ao seu redor, ou seja, o que está a acontecer pode ser vivido como sendo irreal, nebuloso ou distorcido. A pessoa pode sentir-se como se estivesse num sonho ou numa bolha, ou ainda como se houvesse um véu ou um vidro entre si e o mundo ao seu redor. O mundo pode ser vivido como artificial ou inerte. Uma vez que a dissociação acontece, muitas vezes a desrealização pode-se fazer acompanhar de distorções visuais, como por exemplo a visão embaciada, a acuidade visual aumentada, o campo visual aumentado ou diminuído, a tridimensionalidade exagerada ou alteração da distância ou tamanho dos objetos. Também podem acontecer distorções auditivas, por exemplo sentir que os sons são mais intensos. A pessoa por vezes pode sentir uma alteração no sentido do tempo, como se este estivesse a passar devagar ou depressa demais.

Nos episódios de despersonalização ou desrealização a pessoa por vezes apresenta sintomas como pressão na cabeça, formigueiro ou atordoamento.

As pessoas que sofrem deste tipo de dissociação podem ter dificuldade em descrever o que sentem e podem sentir que estão a ficar “loucas”. Também apresentam por vezes medo de terem ou virem a ter danos cerebrais irreversíveis. A pessoa tende ainda a ficar a ruminar ou a preocupar-se em excesso, constantemente obcecada com questões existenciais ou a verificar se as suas perceções permanecem reais. É comum por isso surgirem sintomas de depressão e ansiedade.

É relativamente comum acontecerem sintomas passageiros de despersonalização e desrealização, que duram horas ou dias. Aproximadamente metade de todos os adultos já sofreu pelo menos um episódio de dissociação deste tipo ao longo da vida. Para que o diagnóstico deste transtorno seja estabelecido, os sintomas devem estar presentes mais tempo. Alguns fatores podem agravar os sintomas, como por exemplo o stress ou a privação do sono.

Os sintomas deste transtorno da dissociação são muito perturbadores e, por isso, interferem na vida da pessoa de forma significativa. A pessoa muitas vezes tem dificuldade em concentrar-se e sente como se estivesse desconectada da sua vida, o que provoca consequências a diversos níveis.

Amnésia dissociativa

A amnésia dissociativa caracteriza-se uma dissociação ao nível da memória, manifestada por uma incapacidade em recordar informações autobiográficas. A amnésia dissociativa pode ser localizada num evento ou período de tempo, pode ser seletiva para um aspeto específico de uma situação, ou pode ser generalizada englobando a história de vida e a própria identidade. Na amnésia dissociativa a pessoa não se consegue lembrar de informações acerca de si mesma ou de coisas que lhe aconteceram. Embora algumas pessoas identifiquem que existe uma lacuna na sua memória, outras não têm inicialmente consciência da amnésia. Só percebem que esta ocorreu quando são confrontados com situações ou informações das quais não se recordam.

É raro ocorrer uma amnésia dissociativa generalizada, em que a pessoa não se recorde da totalidade da sua história de vida ou identidade. Nestas situações a pessoa pode perder conhecimentos prévios que tinha ou não conseguir aceder a capacidades que estavam bem aprendidas. Geralmente a amnésia generalizada acontece de forma aguda e repentina, o que deixa a pessoa perplexa e desorientada. Este tipo de amnésia, sendo rara, tende a ocorrer em veteranos de guerra, vítimas de ataque sexual e pessoas que sofreram um stress emocional extremo.

O mais comum é a amnésia dissociativa localizada ou seletiva. A amnésia localizada pode incluir um período de tempo longo, como por exemplo os meses ou anos em que a pessoa sofreu abusos. Na amnésia seletiva a pessoa pode lembrar-se de alguns, mas não todos os eventos de um determinado período de tempo. Na amnésia sistematizada, a pessoa perde a memória de uma determinada categoria de informação específica (por exemplo, todas as recordações relacionadas com a família). Na amnésia contínua, a pessoa esquece todos os eventos novos à medida que estes acontecem.

Por vezes as pessoas com amnésia dissociativa apresentam flashbacks, ou seja, sentem-se como se a situação estivesse a acontecer de novo. Por vezes adotam comportamentos de risco, como automutilação ou tentativas de suicídio. Neste tipo de dissociação também é frequente as pessoas apresentarem sintomas depressivos e ansiosos.

Transtorno dissociativo da identidade

Esta transtorno caracteriza-se pela presença de dois ou mais estados distintos de personalidade ou uma experiência de possessão e episódios recorrentes de amnésia. É uma fragmentação da identidade, também conhecida vulgarmente como “personalidades múltiplas”. As pessoas podem vivenciar descontinuidades na identidade e na memória que podem não ser imediatamente visíveis e percetíveis para os outros. As pessoas com este transtorno sofrem intrusões recorrentes inexplicáveis no seu funcionamento consciente e sentido de identidade própria, por exemplo vozes, ações e fala dissociadas, pensamentos, emoções e impulsos intrusivos. Também se verificam alterações no sentido de identidade, por exemplo sentir como se as suas ações, atitudes ou o próprio corpo não lhes pertencessem. Ocorrem também mudanças bizarras na perceção, como fenómenos de despersonalização ou desrealização. Muitas vezes um elevado grau de stress provoca um agravamento dos sintomas da dissociação, tornando-os mais evidentes.

As pessoas com transtorno dissociativo da identidade muitas vezes sentem como se tivessem sido “possuídas” quando alteram a sua identidade. A dissociação ocorre no próprio sentido de identidade e na própria personalidade. É como se um “espírito” ou algum ser sobrenatural ou entidade externa tivesse assumido o controlo de si, do seu corpo ou das suas ações e emoções. Quando ocorre essa “possessão” a pessoa pode começar a falar e agir de uma forma completamente diferente, como se a sua identidade tivesse sido substituída. Como há uma sensação de possessão, muitas vezes a pessoa depois não se lembra do que aconteceu nesse período. Muitas vezes a dissociação acontece sem possessão, e nesse caso as pessoas sentem como se estivessem apenas a observar as suas próprias ações e palavras, e não conseguem reverter a situação. Também relatam por vezes ouvir vozes, que são vivenciadas como fluxos de pensamentos múltiplos, desconcertantes e independentes, que a pessoa não é capaz de controlar.

Podem surgir de repente emoções fortes e impulsos, sem que a pessoa tenha domínio ou controlo pessoal sobre eles. Para quem observa, pode verificar que a pessoa altera de atitudes, opiniões e preferências pessoais várias vezes. A pessoa pode por exemplo num dia vestir-se com um determinado estilo de roupa e no dia seguinte vestir-se de forma completamente diferente.

As pessoas com este transtorno de dissociação relatam muitas vezes sentir os seus corpos diferentes, por exemplo sentirem-se no corpo de uma criança ou de uma pessoa do sexo oposto. As alterações que acontecem no sentido de si mesmas e na perda de domínio e controlo dos seus comportamentos podem ser acompanhadas por uma sensação de que essas atitudes não são suas e não estão sobre o seu controlo.

É frequente verificar-se a amnésia dissociativa neste transtorno. Há lacunas na memória antiga de acontecimentos pessoais, por exemplo a pessoa não se recordar de aspetos da sua infância ou de eventos de vida importantes, bem como lapsos na memória do que aconteceu no próprio dia ou de coisas que a pessoa antes sabia fazer como ler ou conduzir. A pessoa pode descobrir evidências de tarefas ou ações que não se lembra de ter feito, como por exemplo encontrar objetos que não se lembra de ter comprado, ou textos que não se lembra de ter escrito. As pessoas com transtorno dissociativo da identidade podem relatar que se encontraram de repente no trabalho, numa praia ou em algum outro sítio sem se lembrarem de como foram lá parar.

É frequente as pessoas com transtorno dissociativo da identidade associado à dissociação terem sintomas depressivos, ansiedade ou comportamentos de abuso de substâncias e automutilação. Muitas vezes ocultam ou não têm consciência dos sintomas de dissociação. Muitas relatam também flashbacks dissociativos, nos quais revivem uma determinada situação como se ela estivesse a acontecer outra vez. Durante o flashback pode haver mudança de identidade e perda de contacto com a realidade, e pode também acontecer que a pessoa depois não se lembre do que aconteceu.

Muitas vezes as pessoas que apresentam transtorno dissociativo da identidade dissociação sofreram abusos na infância ou mesmo na idade adulta. Este transtorno está geralmente associado a experiências devastadoras e traumáticas. A dissociação também pode ser desencadeada pela saída de uma situação traumatizante, como por exemplo sair de casa onde sofria de maus-tratos por parte da família, pela chegada dos filhos da pessoa à mesma idade que ela tinha quando foi abusada ou traumatizada, por experiências traumáticas posteriores ou pela morte ou início de doença terminal no(s) abusador(es).

O transtorno pode surgir em qualquer fase da vida e em qualquer idade. Na infância gera problemas de memória, concentração e apego. Quando acontece em crianças estas geralmente não apresentam mudanças na personalidade, mas sim inicialmente uma sobreposição e interferência entre estados mentais, bem como sintomas relacionados a descontinuidade nas experiências vividas.

As consequências do transtorno dissociativo da identidade são várias. Muitas das pessoas que sofrem deste transtorno tentam o suicídio e adotam comportamentos de autoagressão. Além disso, pode haver um prejuízo significativo nas várias áreas de vida da pessoa, como a nível profissional, pessoal, social, familiar… Os sintomas podem comprometer as relações sociais e a vida ocupacional da pessoa.

Qual o tratamento para a dissociação?

O tratamento nos casos de dissociação dependerá necessariamente do quadro em si, nomeadamente do tipo de transtorno dissociativo que está presente.

É importante que seja procurada ajuda profissional assim que são identificados os sintomas, pois quanto mais atempado e precoce for o tratamento, melhor. Se os sintomas são frequentes e interferem com a vida diária, a ajuda psicológica ou psiquiátrica pode ser necessária. O diagnóstico pode envolver uma avaliação médica e exames complementares, para descartar outras possíveis causas, como transtornos convulsivos ou abuso de substâncias. Além disso, é feita uma entrevista clínica detalhada e por vezes pode também ser pedido ao paciente para manter um registo diário por forma a melhor avaliar a sintomatologia. Podem também ser utilizados questionários e instrumentos de avaliação psicológica estandardizados.

O objetivo da intervenção psicológica nestes casos é ajudar a integrar novamente as diferentes partes que se desconectarem ou desintegraram, devido a um possível trauma. A abordagem psicoterapêutica ajudará a pessoa a gerir e regular melhor os seus estados emocionais.

A prioridade será sempre a de estabilizar o paciente por forma a garantir a sua segurança. Por vezes a hospitalização pode ser necessária, em casos mais graves, para permitir uma monitorização e suporte contínuos.

Uma vez que geralmente a dissociação tem na sua origem uma situação traumática, o tratamento passará também pela abordagem do trauma e reintegração das partes dissociadas, sendo depois exploradas estratégias de autocuidado e novos recursos internos para lidar com as dificuldades e as emoções.

Na psicoterapia podem ser usadas diferentes técnicas e abordagens. As técnicas cognitivas, por exemplo, ajudam a bloquear e a modificar os pensamentos negativos e obsessivos. Por outro lado, as técnicas comportamentais podem ser úteis para ajudar a pessoa a concentrar-se em tarefas que a distraem dos pensamentos ruminantes e obsessivos. Algumas técnicas de retorno à realidade são utilizadas através do recurso aos cinco sentidos (visão, audição, tato, paladar e olfato). Mediante estas estratégias a pessoa recorre aos seus cinco sentidos para se reconectar consigo mesma e com o mundo. Pode por exemplo tocar num pedaço de gelo, focar a atenção numa música com volume elevado, tomar um banho quente…

Na psicoterapia procura-se também auxiliar a pessoa a superar determinados conflitos internos, sensações negativas e experiências.

Por vezes pode ter que se recorrer, em complemento à psicoterapia, à medicação. Por vezes são utilizados ansiolíticos ou antidepressivos.

Diana Pereira

Amante de histórias, gosta de as ouvir e de as contar. Tornou-se Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde, pela Universidade do Porto, mas trouxe sempre consigo a escrita no percurso. Preocupada com histórias com finais menos felizes, tirou pós-graduação em Intervenção em Crise, Emergência e Catástrofe. Tornou-se também Formadora certificada, e trabalha como Psicóloga Clínica, com o objetivo de ajudar a construir histórias felizes, promovendo a saúde mental. Alimenta-se de projetos, objetivos e metas. No fundo, sonhos com um plano.