Associamos frequentemente a palavra “trauma” e a expressão “stress pós-traumático” a situações graves, de guerra, desastres ou situações de violência e abuso. No entanto, o trauma pode surgir de um leque variado de situações e experiências de vida, com diversos graus de gravidade. Para além disso, o trauma tem invariavelmente um impacto significativo na nossa vida e na nossa saúde mental.
Este artigo pretende explorar estes conceitos, explicar a perturbação de stress pós-traumático e as possibilidades de tratamento e intervenção. Boa leitura!
O que é o trauma?
A designação trauma é usada para descrever uma lesão física ou psicológica causada por uma ocorrência emocional extrema. Neste contexto, o trauma está associado a sofrimento psicológico grave.
Assim, o trauma gera-se a partir da vivência da crise psicológica. A crise psicológica ocorre mediante a vivência de uma situação exigente, em que os mecanismos normais de adaptação e resolução de problemas não têm êxito ou não são suficientes, resultando num desequilíbrio psicológico (com sentimentos de ansiedade, medo, culpa, impotência, etc.) e diminuição do funcionamento adaptativo.
Por exemplo, imaginemos que tem um pequeno acidente com o carro, em que ninguém se magoa. Possui os recursos e mecanismos para lidar com a situação: sabe o que tem de fazer, sabe que é normal sentir-se sobressaltado e nervoso, mas consegue lidar com essas emoções.
No entanto, se tiver um acidente grave que envolva ferimentos graves, provavelmente essas estratégias já não vão ser suficientes. É devido a essa insuficiência dos seus mecanismos de adaptação e resolução de problemas que se instala a crise psicológica.
O que são eventos traumáticos?
Os eventos traumáticos são situações que envolvem experiência de morte, perigo de morte, lesão significativa ou risco para a integridade do próprio ou dos outros; em que a resposta do indivíduo envolveu medo intenso, horror ou sensação de impotência.
Alguns exemplos destas situações são acidentes graves, explosões, queda de estruturas ou transportes, bem como acidentes de viação, doenças graves ou com risco de morte, crimes violentos, rapto, assaltos, desastres naturais, cenários de guerra, maus-tratos infantis, morte de familiar ou amigos próximos, prisão, violência doméstica.
Importa também referir que os eventos traumáticos provocados pelo homem têm um impacto mais negativo e a recuperação é mais difícil do que os eventos naturais, sendo mais provável que a pessoa desenvolva stress pós-traumático. Por exemplo, é mais difícil recuperar de uma situação de terrorismo, assalto ou violência física / sexual do que de um incêndio ou terramoto.
O trauma psicológico é mais impactante, demora mais a reconstrução. Isto porque existe a questão da culpa: este evento podia ser evitado, enquanto que a natureza nós não controlamos de forma tão direta.
Quais os sintomas do stress pós-traumático?
Uma questão muitas vezes colocada é se “todas as pessoas expostas a eventos traumáticos desenvolvem stress pós-traumático?”.
Em Portugal, ao longo da vida, cerca de 75% da população adulta já foi exposta a pelo menos uma situação potencialmente traumática. As mais comuns são a morte violenta de um familiar ou amigo, o ser assaltado e testemunhar um acidente grave ou a morte de alguém. Como tal, esta é uma experiência algo comum. Por isso, nem todas as pessoas que vivenciam este tipo de situações desenvolvem stress pós-traumático. De facto, a maior parte não desenvolve este tipo de quadro.
No entanto, praticamente todas as pessoas expostas a estas situações apresentam, no momento, respostas de stress, que se refletem em diversos domínios:
- Emocional: choque emocional, depressão, ansiedade, pânico, culpa, raiva, medo, desespero, irritabilidade, embotamento afetivo, sentimento de luto / pesar;
- Cognitivo: dificuldade de concentração, dificuldade de manter a atenção / foco, dificuldade na tomada de decisões, baixa autoeficácia, descrença, negação, alterações na memória, confusão, distorção, pensamentos intrusivos, preocupação;
- Físico: hipertensão arterial, taquicardia, dificuldade respiratória, fadiga, insónia, hiperalerta, queixas somáticas, náuseas, sede, alteração do apetite, arrepios e suores;
- Comportamental: luta ou fuga, ficar “congelado ou imobilizado”, obediência automática, alienação, abandono de atividades, desconfiança, problemas no trabalho, conflitos, agitação.
Estas reações são normais e geralmente duram cerca de uma a quatro semanas. A maior parte daas pessoas tem apenas estas reações de stress e depois consegue recuperar. Algumas pessoas recuperam o seu equilíbrio psicológico num período de vários meses até 1 ou 2 anos. Uma percentagem pequena tende a desenvolver problemas mais crónicos, onde se enquadra a perturbação de stress pós-traumático.
Fatores de risco do stress pós-traumático
Como vimos, apenas algumas pessoas desenvolvem perturbação de stress pós-traumático. Existem alguns fatores de risco que fazem com que algumas pessoas estejam mais propensas a desenvolver este tipo de quadro, enquanto que outras conseguem recuperar ao fim de algum tempo. Estes fatores de risco podem estar presentes em diferentes momentos:
Fatores de risco antes do evento traumático:
- A pessoa já ter uma história psiquiátrica prévia, ou seja, já possuir problemas psiquiátricos;
- A personalidade da pessoa ter determinadas características, como por exemplo tendência a evitar as situações e os problemas;
- A pessoa ter um baixo suporte social, isto é, poucas pessoas à sua volta com as quais pode contar e que lhe dão apoio;
- A pessoa já ter passado por acontecimentos traumáticos anteriormente;
- As estratégias que a pessoa normalmente utiliza para lidar com os problemas são desadequadas.
Fatores de risco durante o evento traumático:
- Quanto mais grave e severo for o acontecimento e quanto mais exposta a pessoa estiver, maior o risco. Por exemplo, é mais provável o desenvolvimento de perturbação de stress pós-traumático numa vítima de violação do que nos seus familiares ou em alguém que assistiu a uma situação de violência;
- Quando a ameaça é real, o risco também é maior;
- Se existirem várias perdas pessoais o risco aumenta. Por exemplo, numa situação de incêndio o risco de desenvolver perturbação de stress pós-traumático é maior para aquelas pessoas que perderam a casa ou familiares no incêndio, do que para aquelas que não perderam;
- Se durante o evento a pessoa apresenta uma resposta de medo, desesperança ou dissociação (fica alheada ou “fora” da realidade) é mais provável a posterior existência de stress pós-traumático;
- Quanto menor o controlo que a pessoa tem sobre os acontecimentos, maior o risco.
Fatores de risco depois do evento traumático:
- Se para além de ter vivenciado o evento traumático a pessoa tem no momento outros problemas e fatores de stress na sua vida (como conflitos familiares, dificuldades no trabalho, dificuldades financeiras, etc) o risco aumenta;
- Se após o evento traumático a pessoa tem poucas pessoas que a apoiam e ajudam, o risco de desenvolver stress pós-traumático é maior;
- Se após o evento a pessoa utiliza estratégias desadequadas, como por exemplo evitar lidar com as suas emoções ou com os problemas, culpar-se, consumir substâncias, etc., aumenta o risco;
- Quanto menos informação a pessoa tem acerca do acontecimento, maior o risco de stress pós-traumático;
- Se a pessoa após o evento crítico não tiver o acompanhamento de que necessita, a probabilidade de desenvolver perturbação de stress pós-traumático é maior.
Pelo contrário, se após o evento crítico a pessoa retomar as suas atividades do dia-a-dia, assumir uma postura ativa na resolução de problemas, tiver o apoio das pessoas à sua volta e estiver devidamente informada sobre o que aconteceu ou o que vai acontecer, então a probabilidade de desenvolvimento de quadros como o stress pós-traumático é menor.
O que é a perturbação de stress pós-traumático?
A perturbação de stress pós-traumático é uma perturbação reconhecida no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-5), e compreende a presença dos seguintes aspetos e sintomas:
- Exposição a ameaça de morte, morte real, ferimento grave ou violência sexual;
- Presença de sintomas intrusivos, por exemplo a pessoa ter lembranças repentinas sobre o incidente, sem ter controlo sobre esses pensamentos e lembranças, ou ter pesadelos relacionados com o incidente;
- Evitamento persistente dos estímulos associados ao acontecimento traumático. Ou seja, a pessoa evita pessoas, atividades, situações ou locais que despertem memórias do evento traumático, o que acaba muitas vezes por fazer com que altere e limite significativamente a sua vida diária;
- Alterações negativas nos pensamentos e no humor associadas ao acontecimento traumático. Por exemplo, a pessoa tem pensamentos negativos sobre si própria, os outros, o mundo ou o futuro, e sente-se frequentemente mal (em baixo, deprimida, ansiosa, com medo…);
- Alterações significativas na ativação e reatividade associadas ao acontecimento traumático, ou seja, a pessoa está mais reativa, sempre hipervigilante e alerta ao perigo;
- A duração dos sintomas é de mais de um mês e estes causam um sofrimento significativo e/ou alterações no funcionamento social, ocupacional e profissional da pessoa.
É comum que as pessoas que sofrem de perturbação de stress pós-traumático acabem por ter outros problemas e perturbações associadas, tais como perturbações de ansiedade, somatização, abuso de substâncias, entre outras.
Prevenir a perturbação de stress pós-traumático
Após um evento traumático, algumas estratégias são importantes para que a pessoa consiga recuperar e para minimizar a probabilidade de desenvolvimento de um quadro de perturbação de stress pós-traumático.
A pessoa deve procurar analisar as ações realizadas durante o incidente e aprender com os erros realizados, bem como aceitar os sentimentos e emoções relacionados com o incidente. Quanto mais expressarmos os nossos pensamentos e sentimentos, mais facilmente o nosso equilíbrio será recuperado.
Estratégias importantes após a exposição ao evento traumático:
- Falar sobre o que se passou e de como se sente com as pessoas mais próximas ou que também estiveram envolvidas. Por vezes são criados grupos de apoio, que permitem um sentido de comunidade e a partilha de emoções, bem como de conselhos e estratégias;
- Voltar à rotina diária, tentando organizar as atividades para os próximos dias, de forma equilibrada e sem exigir demasiado de si próprio;
- Passar tempo com as pessoas que são importantes;
- Logo que seja possível, enfrentar os locais e as situações que recordam o acontecimento;
- Adotar hábitos de vida saudáveis, nomeadamente: dormir bem, manter uma alimentação saudável, evitar consumir álcool ou outras substâncias em excesso, praticar atividade física;
- Envolver-se em atividades que habitualmente lhe dão prazer;
- Usar estratégias que normalmente o ajudam a gerir as suas emoções.
Para além disso, recomenda-se que após a ocorrência de uma situação potencialmente traumática sejam aplicados os primeiros socorros psicológicos. Os primeiros socorros psicológicos consistem num conjunto de estratégias que podem ser praticadas quer por profissionais de saúde mental (psicólogos), quer por profissionais de outras áreas presentes no incidente crítico, desde com formação e preparação para tal.
Os primeiros socorros psicológicos têm como objetivo proporcionar apoio humano básico, fornecer informação prática, mostrar empatia, preocupação, respeito e confiança nas capacidades da pessoa para superar as dificuldades. Na fase crítica durante ou logo após o evento traumático, a utilização destas técnicas ajuda a pessoa a conseguir organizar-se, sentir-se protegida, obter informação e readquirir algum controlo. Por isso, a aplicação dos primeiros socorros psicológicos pode ajudar a minimizar a probabilidade de a pessoa desenvolver posteriormente um quadro de perturbação de stress pós-traumático.
Quais os sinais de alerta do stress pós-traumático?
Existem alguns sinais que podem ser indicativos de que a pessoa poderá estar a desenvolver ou já ter desenvolvido um quadro de stress pós-traumático e, como tal, necessitar de uma intervenção adequada. Alguns destes sinais são:
- Não consegue deixar de pensar no que aconteceu;
- Sente-se muito tenso ou com medo a maior parte do tempo;
- Não consegue ter prazer com nada;
- Não consegue ir trabalhar ou assumir as responsabilidades habituais;
- Comporta-se como se o acontecimento estivesse a acontecer outra vez;
- Irrita-se ou é agressivo com as pessoas que o rodeiam;
- Consome álcool, ou outras drogas, em excesso.
Qual o tratamento para o stress pós-traumático?
Existem tratamentos específicos para a perturbação de stress pós-traumático, e que estão validados cientificamente. Os tratamentos podem dividir-se em duas grandes categorias: centrados no passado ou centrados no presente (ou ainda uma combinação de ambos), ou seja, centrados ou não centrados no trauma.
Pelo menos três terapias são consensualmente eficazes para a perturbação de stress pós-traumático, de acordo com a comunidade científica. Todas estas são levadas a cabo por um psicólogo devidamente qualificado e com formação nas terapias em questão.
Terapia de Exposição Prolongada
Neste tipo de psicoterapia os pacientes enfrentam gradualmente memórias, sentimentos e situações relativas à situação traumática. Ou seja, começam por ser expostos a estímulos que não causam tanto desconforto ou sofrimento, passando progressivamente para estímulos mais difíceis de enfrentar.
O objetivo é que a pessoa possa enfrentar as memórias e os pensamentos relativos ao trauma sem provocar níveis elevados de ansiedade. A exposição é acompanhada pelo psicólogo e feita mediante a aquisição de um conjunto de ferramentas e estratégias (nomeadamente, de relaxamento) que ajudam o indivíduo a melhor enfrentar as situações temidas.
Terapia de Processamento Cognitivo
Nesta intervenção as pessoas avaliam e mudam os pensamentos perturbadores que desenvolveram desde o trauma, para mudarem o seu modo de sentir. Pretende-se que o paciente adquira consciência das suas crenças e pensamentos e, com a ajuda do psicólogo, as questione por forma a depois desenvolver crenças e pensamentos mais positivos e funcionais. Este reprocessar de pensamentos conduz depois a uma nova forma de encarar o trauma e altera também as emoções, sentimentos e comportamentos que lhe estão associados.
Eye Movement Desentization and Reprocessing (EMDR)
Este tipo de intervenção promove o processamento das memórias, pensamentos e sentimentos perturbadores relacionados com o trauma, já que, ao processar estas experiências, os pacientes podem diminuir os seus sintomas.
Em termos práticos, na terapia EMDR emprega-se um protocolo específico no qual a pessoa se foca na memória traumática ao mesmo tempo que existe uma estimulação bilateral (que pode ser visual, através de uma luz, tátil através do toque ou auditiva com sons bilaterais). Esta estimulação ativa o sistema nervoso parassimpático, auxiliando a pessoa a integrar a memória perturbadora e diminuir o sofrimento que lhe está associado. Esse resultado permite uma nova visualização do problema (reprocessamento).
A intervenção psicológica é extremamente importante para a recuperação da pessoa com perturbação de stress pós-traumático. Quanto mais atempada for a intervenção, melhores e mais rápidos serão os resultados, permitindo à pessoa diminuir o seu sofrimento e readquirir o controlo sobre a sua vida.